versiones, versiones y versiones...Director, editor y operador: Diego Martínez Lora
antónio maga:
gelo e mais 2 poemas
gelo
este peso gelado
da solidão,
a presença constante
de um corpo ausente
que quero morder:
afogar-lhe os olhos de lágrimas
de dor e medo
até sentir o sal do seu sangue
na minha língua.
vingar num corpo
inocente
de mulher
todas as noites
petrificadas.
o corpo parado
o olhar parado
e raiva
tanta.
eu só quero chorar
com o despudor
indecente
das mulheres do povo
nos funerais de aldeia.
eu só quero o carinho
meloso
que se dá aos cães.
eu quero um regaço de avó
e uma mão enrugada
moldando-me a cara
em gestos lentos.
só quebrar este gelo!
o gelo
que envenena o ar
paralisa o sangue e me
morde as entranhas numa acidez de lágrimas
castradas!
eu quero a paz
das últimas lágrimas,
da angústia que se
dissolve
na alvorada...
eu quero um sorriso da amiga
emudecendo estes cânticos de
morte.
eu quero voar em vertigem desta
prisão
que construí com a raiva tímida
das crianças doentes.
oh! só quebrar este gelo!...
eu quero
amar com
paixão
exorcizando-me o
negro
deste sangue
maldito
de impotente
impotente!
eu
quero que esta chuva pare
ou se torne mais forte,
rir-me do passado
rir-me da morte,
fugir para a rua
e vaguear sem norte,
devorar este ar frio
em arquejos de afogado,
mergulhar no silêncio
puro
de uma noite virgem...
cactos
o meu corpo recusa-se a viver.
este corpo só brinca.
brinca à vidinha
patética
das recusas sorridentes.
brinca às
brincadeiras tristes
de corpos
entrelaçados,
de gemidos
simulados.
este corpo
só brinca
às palavras vendidas
de mentiras
de mentiras
de mentiras.
este corpo
só brinca à vidinha
de ninfeta
no deserto:
o clítoris em chamas
e à volta só há
cactos.
do racismo
racista, eu? o absurdo de tal insinuação nem me permite sentir uma indignação ofendida... logo eu, entre todos! eu?! sei, já há algum tempo, que o meu sonho mais querido era ser preto. teria uns dentes saudáveis e branquinhos e uma pila grande. logo dois dos meus maiores problemas!
aposto que sorriria com uma frequência algo excessiva. aquele sorriso um pouco imbecil de preto, num anúncio de café africano, mas enfim...
e aliás, sou português, e toda a gente sabe que os portugueses não são racistas. foram, até, os colonizadores mais carinhosos da história...
(*)antónio maga, poeta português. Mora em Vila Nova de Gaia. Os 3 poemas foram escolhidos de "o livro do gelo", publicado pela editorial 100 - Outubro 2003