versiones, versiones y versiones...renovar la aventura de compartir la vida con textos, imágenes y sonidosDirector, editor y operador: Diego Martínez Lora    Número: 49 / abril-mayo 2003


Miguel Osório:

Darwin - um dia em Kakadu


Deixando Townsville, Queensland, pequena cidade do nordeste na costa dourada, sobre a maior barreira de coral do mundo, decidi ir a Darwin, Território do Norte, Austrália, também na costa, mas a norte do país, virada para Timor. No caminho de 35 horas de camioneta, surpreenderam-me alguns montes pequenos de terra vermelha, como mecos, que durante uma boa parte do caminho iam aumentando em número, e em tamanho, sem passarem da altura do joelho. Não dei depois muita importância, na altura, embora os tivesse em mente – de que se tratava?

 

A camioneta na Austrália é talvez o melhor meio de transporte para o turista. Mais rápido que o comboio, e abrangendo uma área muito superior, adquiri um passe para fazer uma parte do país; não me podia desviar do caminho, neste caso era a volta Oeste da Austrália, pela costa, até Darwin, cortando seguidamente o continente australiano a meio, mas subia e descia quando quisesse, podendo visitar qualquer ponto de paragem o tempo que quisesse. Esta é a metade mais importante do país, e mais populada. De facto, é notória a pequeníssima densidade populacional, na altura, a população total era de 17 milhões, para uma área equivalente à dos Estados Unidos (Hawai e Alasca não incluídos). Os motoristas, vestidos à inglesa, de calção e sapato quando faz calor, com a camisa impecavelmente engomada, e, é claro, o típico chapéu australiano na cabeça, colocavam com uma delicadeza extrema as mochilas dos viajantes na bagageira. O número de malas em algumas rotas era de facto reduzido, sendo a maior parte dos lugares preenchidos por jovens viajantes, onde a mochila bate aos pontos a tradicional mala de viagem. Um detalhe interessante era também o facto dos motoristas fazerem algum comentário “de cicerone” por iniciativa própria, havendo inclusivamente os que contavam anedotas, sem, contudo, nunca serem abusivos. De facto, o espírito australiano não é comparável a nenhum outro commonwealthiano...

 

Estrada fora, os road trains são algo de assustador quando surgem do nada nestas estradas com pouquíssimo tráfego. Estes camiões mastodônticos contendo por vezes quatro reboques, necessitam de 1 km para poder travar! A típica protecção à frente, como em qualquer veículo australiano de quatro rodas que circule fora das zonas urbanas, é assustadora, destina-se aos animais que infelizmente se cruzam, e até mesmo aos que dormem sobre o alcatrão à noite, para se aquecerem.

 

Darwin é pequena, havendo unicamente 2 estações ao longo do ano, a seca e a húmida. Calor...muito! Escolhi, por acaso, a melhor para a visitar, a estação seca. De Outubro a Dezembro não se pode ir à praia, o mar está cheio de alforrecas cuja picada é mortal. Por toda a parte nos hotéis há avisos para o incauto turista.

 

Um passeio obrigatório em Darwin, já que a cidadezinha em si não tem muito para oferecer, é uma visita ao Parque Nacional de Kakadu, 20.000 km2 de área natural única, património mundial, talvez o principal motivo de turismo nesta zona.

Procurando o melhor tour, descobri um de 3 dias, num furgão tipo mini-bus, para 14 pessoas. Penso ter acertado, o grupo era muito simpático e o guia era um verdadeiro Mike (Crocodile) Dundee, cujo nome era...Mike. Havia uma dinamarquesa (Hanne), uma irlandesa (Kate), 3 espanhóis (Félix, Juan e Juan), um canadiano (Kevin) de origem vietnamita (eleito, ao jantar, cozinheiro oficial), eu (os portugueses não abundam como turistas pelos antípodas), e, é claro, “pommies”. Os australianos são exímios em utilizar calão australiano, neste caso vocacionado para gozar os ingleses; “pommy”, diminutivo de “pom”, deriva por sua vez de POHM – Prisoner Of His Majesty.

 

Este grupo era uma boa amostra do viajante tipo, entre os 18 e os 30 anos, que visita a Austrália; eu e Félix, um espanhol com quem tinha feito uma parte da viagem, éramos excepção relativamente à duração da estada, todos os outros estavam lá durante 6 meses a 1 ano. Normalmente 1 ano, tratando-se de viajantes oriundos de países da Commonwealth. Solicitam nos seus países um “working holiday visa” e vêm para trabalhar, ganhando algum para depois gozarem alguns meses a viajar com calma pela grande ilha “Down Under”. Considero este ano como uma experiência única de vida, muito útil para se iniciar posteriormente a vida profissional.

 

Conheci o Félix em Heathrow, no aeroporto. Era um verdadeiro personagem, de facto; sem quase falar inglês e com um ar algo inocente, abordava as pessoas que iam subir para o avião (num inglês muito mal arranhado com espanhol à mistura) dado que necessitava de alguém que o entendesse...ele ia aterrar em Sydney mas eu decidi aterrar em Brisbane, deixando a belíssima Sydney para fechar a viagem da Austrália. Combinámos encontrar-nos em Brisbane dali a alguns dias...e encontrámo-nos! Incrível! Estava eu no meio da rua, de manhã,  à procura de um médico que me passasse um atestado de modo a frequentar um curso rápido de mergulho quando...aí estava ele, com o seu ar de perdido, olhando para o mapa da cidade...

 

Antes de sairmos de Darwin, Mike disse que ia dar um salto a casa de um seu amigo, membro de um grupo musical muito bom, que conjuga música aborígene usando o didgeridoo (instrumento de sopro aborígene) com música ocidental. A canção de sucesso era “Treaty” referente ao tratado recentemente conseguido (reivindicado há anos) pelos aborígenes relativamente a direitos territoriais. Trouxe uma cassete com o último trabalho deles, e pusemo-nos a caminho, com um simpático grupo. À medida que entrámos no parque, e que Mike nos instruía sobre o Dreamtime (cultura aborígene) entrávamos de facto noutra dimensão, ao som da música dos Yothu Yindi.


 

Estes direitos territoriais eram muito importantes para a cultura aborígene. Há cerca de 200 anos, quando os ingleses redescobriram a Austrália (ela foi avistada antes por...sim, por portugueses!) na pessoa de James Cook, os aborígenes foram em grande parte exterminados, e os que restaram e viviam nas zonas mais populadas actualmente foram escorraçados para outras áreas. A área mais preservada é Arnhem Land, no Território do Norte. Sendo a cultura aborígene e o seu modo de vida muito ligado à terra e zona onde vivem, ao serem deslocados, perdem a identidade própria, daí verem-se muitos deambular pelas cidades, bêbedos, sem poiso, pois não mais se conseguem identificar com o lugar para onde tiveram de iniciar a sua nova vida.

 

Após entrada oficial no parque, onde conversámos um pouco com o guarda aborígene que nos atendeu, continuamos a nossa incursão no meio da natureza australiana, com fauna à mistura. A um dado momento Mike dizia “Dingooo”, olhámos todos e foi o único Dingo (cão selvagem) que vi. Emus (avestruz australiana), viam-se com facilidade, cangurus abundavam.

 

Chegámos ao sítio onde montámos o nosso “alojamento”: swags (sacos-cama australianos, muito bons, que evitam a tenda), e mosquiteiros que tínhamos de armar por cima dos swags. Mike avisou-nos: “Temos 20 min. para o fazer, depois chegam os mosquitos!”. Aqui sim, começava um sonho, enquanto armávamos as redes, olhámos à volta e víamos wallabies (cangurus pequenos) que, saltitando, iam parando como que perguntando “Quem são vocês, e o que fazem aqui?”. Parecia um sonho, onde reinava a harmonia natureza-fauna-homem.

 

Mike, entretanto foi-nos avisando que no dia seguinte acordaríamos às 6:00 h para ver o que eu tanto desejei: os salties! O crocodilo australiano (salt-water crocodile), de água salgada (daí o nome carinhoso saltie), diz-se que pode atingir 8 m (normalmente 5-6, o macho), e é considerado o mais perigoso do mundo. Dado os saltos que conseguem fazer na vertical a partir da água, Mike contava-nos que alguns turistas, especialmente americanos, iam pescar em barquinhos e mostravam, radiantes, a pescaria ao colega do outro barco, de pé, segurando a presa, até que um saltie mais atento saltava a partir da água levando o peixe e o braço do pescador! Como o crocodilo não come o que abocanha, na altura, mas deixa a presa em algum sítio por vezes por mais de um dia, Mike contava-nos que houve o caso de uma criança apanhada por um saltie e depositada por ele num qualquer esconderijo junto do lago salgado, que tinha sido encontrada, antes do triste e trágico final!


 

Foram-se acendendo as brasas para um magnífico jantar, Mike tinha providenciado uns bifes suculentos, enquanto Kevin, o vietnamita, o decidiu ajudar nos acompanhamentos. A óptima cerveja australiana regou bem o banquete, até que, após um excelente convívio à volta de uma fogueira, Mike perguntou: “Quem quer ir ver os salties agora?” Eu fui o primeiro a por o dedo no ar. Tinha uma vontade louca de ver os famosos répteis. Mike tinha uma lanterna, estava noite cerrada, luar fraco, e ele avisou-nos de que teríamos de ter muito cuidado. Entrámos dentro do furgão, dirigindo-nos para o lago aonde iríamos na manhã seguinte, bem cedo. Descemos um pouco longe da borda do lago, dado que muitos dos crocodilos dormitam fora do lago, nas margens. Mike ligou a lanterna, um foco grande e potente, o silêncio da selva australiana era fabuloso, nenhum de nós falava, estávamos todos atentos.

 

Assim que Mike apontou a luz para o lago, sentimos um arrepio: meia dúzia de crocodilos rastejaram com uma velocidade incrível para dentro da água, como se estivessem em posição de corrida, aguardando a nossa chegada. Alguns elementos femininos do grupo emitiram um grito abafado, de medo e, simultaneamente, de respeito. À superfície da água, víamos alguns salties cujos olhos tinham um brilho amarelo com o reflexo da luz; os que tinham acabado de entrar no lago mostravam ainda as escamas superiores do dorso e cauda fora da água, os outros tinham praticamente só os olhos à tona, qualquer um deles suficientemente intimidador.

 

Fomos dormir, entusiasmados e ao mesmo tempo, algo apreensivos, após a amostra nocturna do que iria ser o dia seguinte. Ainda ficámos na conversa, sempre na companhia da óptima cerveja australiana, até que nos fomos deitar; Mike contava histórias fantásticas, da sua experiência na selva como guia experimentado. Fui o último a deitar-me, calhando-me um swag com a rede abaulada, não dormi grande coisa dada a companhia de um mozzie (mosquito) que fazia uns voos rasantes ao mosquiteiro, perto do meu ouvido...

 

6:00 h, acordámos, e após um rápido, mas abundante pequeno-almoço partimos para o lago. O dia estava esplêndido; chegados à margem, havia 4 botes a motor com casco de alumínio, e dividimo-nos, 3 a 4 por bote. Nem queria acreditar! A quantidade de crocodilos era absolutamente incrível. A minha máquina fotográfica não parava, tal era a emoção. Durante a manhã, vimos mais de uma centena de salties, alguns, fora da água, eram mesmo assustadores. Conseguíamos chegar muito perto deles, a cerca de 3-4 m da margem, onde eles, aparentemente, descansavam. Mike estava atento aos nossos movimentos, mas o grupo estava embebido no absorvente ambiente criado pela fauna fabulosa e única concentrada neste ecossistema, dominada no seu conjunto pelos crocodilos. Viam-se alguns wallabies ao fundo, e diversas aves, a destacarem-se as belíssimas galahs (catatuas australianas cor-de-rosa), e as catatuas brancas. Nas margens, pequenas aves passeavam junto dos salties, tranquilamente.


 

A completar o cenário havia pequenas ilhotas no centro do lago com árvores nuas, onde, em alguns galhos, havia águias marinhas. A envergadura das suas asas deveria atingir quase 2 m. A um dado momento, avistei na margem, com o seu andar reservado, um jabiru. Esta ave, tímida, é lindíssima, da família das cegonhas, parecida na forma com um flamingo, tem cerca de 1,5 m de altura, patas de um vermelho alaranjado, corpo preto, com a parte de cima branco, e cabeça e bico de um preto azulado. Apesar de se pensar que o nome desta bonita ave é aborígene, ele surge devido a um “parente afastado” no Brasil.

 

Foi de facto uma manhã estupenda no seio da natureza australiana. De tarde, fomos ver pintura aborígene em Nourlangie Rock, zona dentro do parque de Kakadu com as melhores obras aborígenes de pintura mural. Pelo caminho, parámos junto ao que finalmente percebi serem os “montes pequenos de terra vermelha, como mecos” que vi ao longo da viagem de Townsville para Darwin – tratava-se de montes criados pelas térmitas. As formigas mascam lama, e depois cospem-na, criando ao longo de algum tempo os tais pequenos mecos; neste caso, a obra era gigante, atingindo cerca de 2 m de altura! Tinha um diâmetro da base de mais de um metro! Nem conseguíamos imaginar a construção de tais monumentos! Quanto tempo e esforço investidos...por formigas!

 

Após mais uns valentes quilómetros parque fora, muitas estórias se ouviram ainda, e muitas dúvidas foram satisfeitas, Mike era um “educador” da cultura aborígene. Cansados do longo dia, fomos todos tomar um banho numa piscina natural com uma queda de água cristalina muito convidativa. Apesar do idílico cenário, e de estarmos todos a necessitar de um banho revigorante, as imagens matinais do lago de salties subiram-nos à mente. Olhávamos uns para os outros até que Mike, experimentado, nos sossegou. Esta zona, conhecia ele bem. Apesar de tudo, deixámo-lo ir à frente...


(*)Miguel Osório, gestor e escritor português. Mora em Matosinhos.


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