versiones, versiones y versiones...Director, editor y operador: Diego Martínez Lora
antónio maga(*):
da amiga
alguma inquietação nestes raros encontros. a
sua fuga das minhas palavras-centro: dor e morte, exaspera-me um pouco.
refugia-se logo num caudal de histórias de colegas doentes, alunos promissores,
de tias e sobrinhas, duma criança vizinha...
se nos víssemos com mais frequência, talvez
conseguisse sacudir esta compressão que sinto ao falar... tenho medo de a
magoar. sei-lhe a fragilidade. tenho que manter uma atenção extrema. usar outro
alfabeto, que não o do meu teatrinho quotidiano. esforço-me por não usar
expressões obscenas, não usar a brusquidão habitual, quando me apetece acabar
uma conversa e ficar sozinho...
é a pessoa por quem senti, talvez sinta ainda,
algo de genuíno e profundo, uma comunhão sincera, nesta caminhada ácida que é a
minha vida.
mas estou mais degradado. receio que a
impaciência transborde e magoe quem tanto gosta de mim... por outro lado, tão
viciado nas minhas feridas abertas, ciosamente abertas por uma lucidez que as
mantém infectadas e me fazem estar quase sempre sozinho, temo que a emoção e o
calor que sinto perto dela me paralisam numa quase imobilidade de animal
espancado...
e o medo de rebentar numa crise de choro, perto
dela...
assim, cuidadoso, falo pouco. mas falo do que
falo sempre: negro, vazio, gelo, morte, solidão. não sei falar de mais nada,
quando estou com ela. tento falar de forma não dramática, pois é assim que as
sinto. são velhas companheiras de sempre. e ela, pela enésima vez, apesar da
sua imensa inteligência e sensibilidade, não aceita. que não, que há momentos
de felicidade redentora, que há pessoas que vale a pena conhecer, que quer
alguma cor nos meus dias escuros, alguma emoção...
e eu digo que tenho os meus momentos felizes,
os meus prazeres. os livros. a música. o cinema. longos passeios solitários
perto do mar. que isso me basta... que o contacto com as pessoas, em geral, me
causa uma mal disfarçada aversão...
e separámo-nos com a tristeza de sempre...
ambos sabemos que o próximo encontro será muito tempo depois...
e agora, no meu quarto, escrevo. tento dissipar
essa tristeza. e apetece-me escrever tudo o que não consigo dizer-lhe. tudo.
que estou farto desta europa cancerosa e hipócrita. farto destas catedrais
bafientas. farto destes canais de televisão de merda. farto destas vidinhas de
porcos sobre nutridos cretinos.
dizer-lhe que quero espaço. mais espaço. espaço
para conseguir o silêncio. um ligeiro cheiro a jasmim. redescobrir a sábia
lentidão do tempo, ler um poema de rilke e deixá-lo ressoar no meu corpo como
pancadas de coração...ouvir música de bach e deixar cair as lágrimas com um
alívio de bálsamo...
que eu só quero apagar todos os néons destas
noites profanas de boémia. fugir para um campo verde, reencontrar a noite,
olhos nos olhos, afogar os olhos nas estrelas, até esvaziar o cérebro de toda a
merda, até que só fique a emoção religiosa de estar vivo...
mas o silêncio nunca dura, aparece sempre uma
voz gritada, luzes, há sempre o imenso ruído das pessoas, puta que as pariu!...
e eu não quero nada com as pessoas, foram elas que me foderam todo, que me
prenderam numa rede de memórias de pesadelo, e quanto mais esbracejo, mais
sufoco, tenho que estar imóvel, numa imobilidade de camaleão, ser cinza no
cinzento, passar despercebido, deixá-las passar, deixá-las ir nas suas azáfamas
de insecto...
pelo menos, estou a escrever. e é bom escrever.
faz-me bem ao corpo.
escrevo sempre a mesma coisa, só pequenas
variantes, sempre o mesmo gemido, sempre o mesmo discurso egocêntrico, patético
de auto-comiseração... não me interessa! escrever é bom! e eu sou o centro do
mundo! claro que sou! do meu mundo...
também há as armadilhas, sempre à espreita.
distrais-te um segundo e pronto, já está!... olho os olhos de uma criança
maltratada e sinto toda a dor que dilacera o seu corpo inocente... sinto o
quanto há de pérfido, repugnante, na gentalha que rasga as infâncias de tantas
formas... e volta-me a raiva de fera. e agrada-me esta raiva. é uma raiva que
quer sangue, tenho que ter cuidado, eu sei, mas reconforta-me. e reconforta-me
saber que vou morrer sem filhos, que nunca teria a sádica ousadia de lançar uma
criança neste mundo de monstros...
e reconforta-me saber que nunca verei um
documentário sobre a fome, miséria e dor deste planeta maldito, sem que a
vergonha me assalte. que nunca vou proferir comentários compungidos, de
circunstância, de teatrinho das sensibilidades... nunca! perante essas
realidades, só há duas reacções aceitáveis: o silêncio, o silêncio como um
manto negro de opróbrio; e o vómito. vomitar-lhes tudo, tudo, nas gravatas
pesporrentas de europeus, no seu ridículo etnocentrismo de super civilização de
farsa, racistas de merda, xenófobos filhos de uma grande puta europeia...
quando é que alguém vai ter os tomates de
reescrever a história deste milénio, numa lucidez desassombrada, e chamar à
europa o que ela foi, o que ela é: o cancro incurável que infectou o mundo de
ganância e morte, em cruzadas de rapina despudorada, em nome de um deus
conveniente, em nome de uma civilização superior... e deu no que deu! olhemos à
nossa volta. e deu no que deu. será preciso dizer mais? deu no que deu...
e eu sou um filho desta puta-europa. amo os
seus poetas. amo os seus músicos. amo e amarei até morrer. amo como nunca amei
ninguém!...
mas, a imensa dor das crianças!! a ignomínia...
(*)antónio maga,
poeta português. Mora em Vila Nova de Gaia. Da amiga pertence a "o livro
do gelo", publicado pela editorial 100 - Outubro 2003