versiones, versiones y versiones...Director, editor y operador: Diego Martínez Lora
Entrevista a Manuel Rogério Gonçalves(*):
A propósito da recente publicação do seu livro de desenhos: Canto de Malavita, pela Editorial 100
(entrevistado por Diego Martínez Lora - transcrição: Madalena Ribeiro)
- Porquê o Canto de Malavita?
- O título é - não digo arbitrário - mas aconteceu como muita coisa acontece no livro. Li-o, por acidente, na capa de um CD e pareceu-me utilizável para aquilo que eu queria comunicar e que era aquilo que aparece, muitas vezes, expresso como a denúncia da absurdidade da vida. Quando comecei a desenhar, não tinha quaisquer planos, nem do que iria fazer, nem da ordem daquilo que iria fazer. Fui fazendo, noite após noite, e cada um dos critérios que me levavam ora a aceitar, ora, na maior parte das vezes, a rejeitar- porque aparentemente simples e grotescos - exigiu um enorme esforço. Cada um desses desenhos procuraria vincular essa observação que eu ouvi há pouco - estar constantemente a observar, nunca fechar os olhos para aquilo que nos rodeia, mas que todos os dias nos massacra, nos martela, nos pesa sobretudo. Uma participação de denúncia, pelo menos. Isso era muito importante. O que, depois, poderia ter acontecido era ter um plano, fazer uma coisa bem definida para cada atitude de intervenção, que me vinculasse do modo mais exacto possível. Não foi nada disso que aconteceu. Eu deixei-me envolver pelo prazer que, aliás, está sempre em tudo pelo prazer de desenhar, de pintar, e depois, muitas vezes, de ser conduzido pelas próprias linhas, pelas próprias cores. Eram elas que, às vezes, me orientavam para cada uma das ilustrações que iam surgindo. Isto por um lado. Por outro lado, também acontecia uma coisa que pode parecer, não digo aleatória, não digo menor, mas que, de facto, é muito importante para mim... É que, se o livro me revela constantemente uma atitude de alguém que observa alguém, e esse alguém que observa alguém está a ser observado, eu, que observava, observava-me também a mim próprio, observava aquilo que eu fazia, e aí vivia de um modo que me fez lembrar o que, noutro dia, li a propósito do riso: que só o Charlie Chaplin conseguiu conciliar o riso com a piedade ao mesmo tempo que sentia comiseração, porque essa comiseração é passiva, é uma atitude de desgosto feito de revolta - ao mesmo tempo pensava, como alguém disse, como o Almada disse, que não há coisa mais séria no mundo do que o próprio riso. Acontecia isso e acontecia com o Chaplin de repente, eu observava que estava a observar uma coisa que me magoava, mas que me provocava o riso. Isso é, para mim, esta nossa ambiguidade na vida, o que é que nós somos de facto. Somos uns tiranetes, que nos magoamos uns aos outros, mas, ao mesmo tempo, somos um espectáculo triste, quase diria. Agora estou a lembrar-me daquilo que no prólogo do livro refiro como tendo sido talvez a primeira experiência de tudo o que acabei de dizer, que foi a rua onde eu nasci. Foi o que eu chamei o tal pátio de comédia onde o tal menino ou os meninos que estavam nessas altaneiras varandas viam o que acontecia na rua - os robertos, os loucos, os presos, que eram para mim um fascínio, porque era, por vezes, tão excessivo, como mais tarde vim a observar, como agora na vida acontece. Eu vejo e as pessoas assistem, hoje em dia, a situações como esta, à qual me refiro em concreto, de um monitor de televisão em que um supliciado vai ser executado e há uma enorme multidão que se junta para assistir, e que aquilo, em termos um bocadinho menores, ou mais prosaicos, é o que nos acontece quando viajamos na estrada e vemos um acidente, e as pessoas regressam desgostosas porque o acidente não teve importância. Ao mesmo tempo, parece que se apiedam, mas, por outro lado, iriam satisfazer ali qualquer coisa, um certo gozo de ver sangue e dor. Bem, são coisas que vão assim acontecendo. Para além disso, já falei da falta de projecto, um projecto que se foi definindo pouco a pouco, um projecto que tem um ponto de partida que é o Canto de Malavita. Esse Canto de Malavita não é o canto da máfia, não é a máfia do padrinho, do filme norte-americano, é dos peões, daqueles que são vencidos, humilhados, torturados, ultrapassados sempre, e que, dizia eu, era feito estranhamente com um certo entusiasmo, não direi alegria. Portanto, toda esta intenção era mesclada de um inebriamento dos materiais com que eu ia fazendo. As cores, as linhas... evidentemente sem um rigor.
- Qual é processo normal pelo qual passa cada um dos teus desenhos?
- Não sei bem. Só quando o desenho está feito é que sei... Nem sequer penso nisso.
- Mas há alguma técnica que usas?
- A técnica que eu uso - é talvez triste dizê-lo - é condicionada por factores menores, como por exemplo e estou quase a rir-me - os chamados materiais pobres: a esferográfica, a mesa da sala de jantar, que serve de cavalete, o papel de fotocópia, tudo isso o material utilizado condiciona o conteúdo que vai surgir depois.
- E porquê o desenho e não a pintura?
- Aí também existe uma certa contradição comigo próprio, porque eu diria que, em princípio, fujo a uma tentação que é ocupar o fundo com cores, que é aquilo que observo na maior parte dos livros nas ilustrações, e que gosto. Simplesmente, pareceu-me que deixar o fundo branco era uma atitude de depuração que eu procuro fazer em tudo, e por isso, em princípio, nem sequer devia existir cor, devia existir apenas linha. Quanto mais simples, mais realizado. A cor, não sei, é quase como uma tentação que aparece depois, em que a linha e a cor se seduzem uma à outra, se entrejogam uma com a outra, e as duas vão traçando um caminho, é um pouco isso.
- Quando descobres o uso das etiquetas?
- Ah, isso das etiquetas... Esse é um segredo mal guardado, um segredo de polichinelo. Também porque eu não tinha, nem tenho, uma técnica. Não tenho uma formação académica. Eu não tinha muito tempo, apenas algumas horas vagas. Nessa altura, eu ensinava e, ainda hoje, tenho outras tarefas. Dispunha de pouco tempo e teria de ser - não digo rápido, porque aí seria precipitado, não digo também económico, no sentido de eliminar aquilo que era fundamental - mas tentava realizar sem me esgotar, em tempo ou em fadiga. Então, descobri e não devo ter sido eu que descobri que, se passava imediatamente para o papel a linha da esferográfica, a cor do marcador, seria muito difícil depois corrigir. Por vezes, rasgava. Rasguei dezenas ou quase centenas de desenhos. Outras vezes, quando me parecia com interesse, uma maneira de corrigir seria colar uma etiqueta, sobre a qual poderia, depois, corrigir ou reproduzir melhor o que gostaria de fazer.
- Que pretendes quando desenhas e que expectativas crias relativamente ao teus desenhos? Sentes-te realizado quando desenhas? Para ti, é importante que os teus desenhos também sejam observados ou é suficiente desenhar?
- Claro que, quando acabava uma noite de trabalho e me deitava, sentia-me como aquele menino que, no dia seguinte, ia ver aquele brinquedo que o Pai Natal deixou na chaminé. Eu ia ver o desenho e isso dava-me um enorme prazer. Mas, fundamentalmente, isso tem uma motivação mais funda e que me parece expressa nas poucas palavras que adornam o livro. Tem uma raiz numa profissão que eu segui durante muito tempo, que é ser professor. E tal como não tenho formação académica para as artes plásticas, a mesma formação académica que tive na faculdade de filosofia, também por responsabilidade minha, foi pobre, talvez porque eu não fruísse daí grande prazer. Não era um fim em si mesmo para uma investigação que eu fosse desenvolver para trabalhos futuros, mas era um meio talvez de seguir uma busca, uma observação. Agradeço bastante à formação filosófica o facto que me parece permitir-me observar melhor. Mas, dizia eu, como professor, e como escrevi e está no livro, durante as aulas, às vezes, como me dizia noutro dia uma aluna, eu parava, a voz desaparecia, e ela perguntava-me o que estaria eu a pensar. Eu estaria, talvez, em busca. Essa é uma meta observação de que eu estaria a observá-los ou a acompanhá-los para os observar nesse momento. E é um momento em que a palavra começa a ter cada vez menos interesse e é, cada vez mais, uma espécie daquela outra via que sempre se ofereceu ao homem, de uma intuição, uma coisa que hoje se diz muito e que se chama a inteligência emocional, que apela para outro modo de estarmos perante o mundo, perante as pessoas e as coisas. E, voltando à pergunta que me foi feita atrás, quando agora, ao fim destes anos todos, encontro antigos alunos e esses alunos me manifestam - não digo reconhecimento - mas o prazer de ter estado com eles, eu estou de acordo com eles. Estava a cumprir uma função muito importante. Embora, muitas vezes, contra o sistema, eu estava a idealizar um outro percurso de ser professor. Muitos, talvez, não deram por isso, os tais candidatos universitários. Esses não, mas talvez outros, a quem eu dizia que a única coisa que achava absurdo na disciplina era a avaliação, avaliar um aluno de filosofia. Mas estava com ele e ria-me com ele. Rir é muito importante, neste caso. Uma vez, cheguei a uma aula e contei-lhes: hoje, ia-me afogando na piscina. No dia seguinte, trouxeram-me um pato de borracha. Isso foi uma coisa fantástica para mim. Era um sinal de que nos entendíamos, de que nos divertíamos, de que estávamos ali não apenas pressionados pelo toque da campainha, não pressionados por um programa, não pressionados por um projecto de exame, mas por um encontro, o que faz com que, ainda hoje, ao encontrar esses alunos, me faz sentir feliz por reencontrar amigos. E acho que isto é tudo.
- O texto da contracapa diz de regresso a um tempo em que contava histórias de absurdidade e com o resto do dia pintava bonecos grotescos que me aproximavam de absurdos pertinazes no viver. As coisas são absurdas por si ou o homem torna-as absurdas na sua incapacidade de compreender a realidade ou de sistematizá-las?
- Eu desejaria, tanto quanto pudesse, enveredar por considerações ditas filosóficas. Eu gostaria de falar como um homem comum e dizer aquilo que eu acho que, como homem comum, poderia observar a esse respeito. Acho que a vida é absurda e aqui há realmente uma certa ligação com atitudes filosóficas. A vida é absurda de facto. Não fomos convidados a viver, há o absurdo da morte. Contra esses, não temos nada a fazer. Agora, existem os absurdos que nós lhe acrescentamos. Quando falo dos absurdos pertinazes são aqueles que os homens são pertinazes em acrescentar. Com esses é que eu não posso. Não quero apresentar-me como um intervencionista, não é isso, mas não quero, pelo menos, calar-me. Esse não calar não é necessariamente abandonar um pedestal. Ocorre no dia-a-dia, no estar com os outros. Incomoda-me muito, por exemplo, aquelas pessoas que dizem que se dão bem com toda a gente. Eu não me dou bem com toda a gente, eu não posso dar-me bem com toda a gente, é impossível. O máximo que eu posso ter é compreensão, se for possível, sobretudo não responder com agressão à agressão, não responder com violência à violência, não tentar de modo algum arvorar o papel de juiz e de justiceiro. Não é isso. Mas é, pelo menos, dizer-lhe olhos nos olhos que não gosto dele. Da mesma maneira que eu digo que não posso não viver apaixonadamente. Apaixona-me a vida no que ela tem de criador e no que ela mostra de belo, em pequenas coisas - as nuvens, as flores, os rios, a juventude. Estar com os outros, conversar com os outros, ouvir os outros. Isso apaixona-me e não posso não viver apaixonadamente. Viver apaixonadamente é incompatível com aceitar uma convivência feita de concessões, por muito que eu respeite, por muito que eu aceite, mas eu não quero. É rara a manhã em que eu não acompanhe a pequena primeira refeição com música do meu leitor. Sou eu que escolho a minha música. Não porque ela vem nos manuais. São aqueles que estão ao meu lado, a ajudar-me a observar melhor. E creio que é isso.
- O filósofo traça caminhos ou guia por caminhos já traçados?
- Eu não queria entrar por aí, por tudo o que já disse atrás. O percurso universitário foi pobre, por culpa minha ou por defeito talvez do sistema. A profissão de professor impunha tarefas que eu detestava. Por outro lado, não acho que a filosofia seja acessível a toda a gente. Por exemplo, acho inconcebível, acho pavoroso quando ouço alguém dizer a filosofia do treinador de futebol, por exemplo. Acho isso uma coisa louca. Agora, no sentido em que a filosofia é um dos modos de estar no mundo, como a ciência, como a arte, como a religião, tudo isso são tudo posições complementares. Aí, sim, tem um papel muito importante. Nisso fiquei muito fiel à memória dos gregos, embora houvesse aí uma contradição grosseira de eles exigirem uma atitude contemplativa, uma atitude de quase abandono do trabalho, que concediam às classes mais desfavorecidas para poderem entregar-se ao pensamento. Mas, nesse sentido, para mim, estar a observar é estar a filosofar. Quanto ao resto, ficaria para outro lugar não digo outra oportunidade, porque eu não a quero - discorrer sobre a pergunta que me foi feita.
- A pergunta está relacionada com o texto de Lu Sin citado no final do livro, que refere que só quando muitos homens caminham na mesma direcção é que se vai adivinhando o caminho.
- Incomoda-me bastante, apesar de eu falar da pobreza da minha formação filosófica, quantas pessoas, com uma auto-suficiência que eu considero ridícula, falam dos filósofos com o maior à vontade. Da mesma maneira que eu digo que não é esse o percurso sobre o qual me debruço, pelo menos primacialmente, também é verdade que não passei em vão pela faculdade de filosofia. Isso levou-me a entender que há níveis no filosofar. Essa citação do Lu Sin não é necessariamente uma citação filosófica, é de um contista, faz parte de um conto.
- Sim, mas este é um texto que foi escolhido entre os poucos textos que há no livro. É importante na medida em que fala de caminhos. Os caminhos estão relacionados com a necessidade. Se não houvesse necessidade, não tínhamos caminhos. Seria, talvez, um universo sem tempo, sem movimento, sem nada, e aí está um pouco o absurdo de existirem caminhos. Mas o Rogério seguiu um caminho, porque todos inevitavelmente seguimos um caminho. Como gostarias que te recordássemos, como um desenhador, como um desenhador crítico, irónico, ou como um professor de filosofia que desenhava?
- Bom, eu ainda não morri. Ainda terei alguns anos para continuar a definir-me, porque só quando se morre é que se está definido. Parece-me a mim que será, talvez, pela negativa que se terá a resposta, aquilo que eu não fui, o que é que eu fui abandonando, o que é que eu fui menorizando. Neste momento, por exemplo, sinto-me, pelo menos por intenção, um desenhador. Ao mesmo tempo, tenho de aceitar que não passei pela Escola de Belas-Artes. Quando tentei seguir um curso de formação plástica, descobri que não sabia desenhar. O resultado é que, aqui, a coisa volta-se contra si própria. Na medida em que eu não sei, tenho de aprender. Isso é um desafio muito grande. E o facto de ter de aprender, de cada desenho ser uma criação. Isso faz com que eu próprio não recorra àquilo que eu já vi, feito por um mestre, mas à minha própria forma de traduzir essa observação. O traço que eu faço será a maneira mais autêntica de exprimir a observação que eu quero acentuar.
- Uma penúltima pergunta: porque é que a mulher ocupa sempre um lugar central nos desenhos?
- Se, há pouco, falei nessa minha impulsividade para viver apaixonadamente, agora usaria um termo de um amigo espanhol que eu conheço: me gustan las mujeres. Quando digo isso, sem pensar em atitudes criacionistas, se nos pusermos a pensar no que Deus criou, vemos que criou coisas muito belas. É claro que também criou coisas hediondas, mas as mulheres são para mim um objecto de sedução, não digo sedução don-juanesca. Eu não sou, de modo algum, um feminista, como podia ser? Mas essa referência também faz parte da minha denúncia do absurdo, o absurdo da modernidade das mulheres que até há muito pouco tempo magoou as mulheres. E, nesse aspecto, estou do lado daqueles que acham que isso não tem saída nenhuma, que é um absurdo. À parte de outras concessões que eu podia continuar a fazer, essa referência insistente à mulher tem a ver com outras referências, como sejam o teatro, o clown, o museu, que são ou pessoas ou personagens ou situações ou espaços nos quais eu me habituei a estar, a percorrer atentamente, que sempre me tocaram. Agora estou a pensar numa coisa e, de repente, quase como nos conflitos contrários dos gregos, penso no oposto. Estou a pensar, por exemplo, no clown. Lembro-me que, uma vez, alguém ia ao circo e eu confessei-lhe que o circo me entristecia e essa pessoa não entendeu nada do que eu queria dizer. Não entendeu que o clown é um génio, no sentido de me deslumbrar como quem deslumbra a alegria de uma criança. Não estou a pensar em termos operísticos dos palhaços. Mas esconde por trás daquela roupagem a lacre, daquela roupagem berrante e divertida tanta tristeza, tanta dor. É aquilo que eu disse que o Chaplin teria feito magistralmente, a compaixão e, ao mesmo tempo, o divertimento. Houve uma altura em que eu via o Chaplin, quando era criança, e me divertia imenso. Agora, há um conflito em mim, e não só em mim. É terrível como ele denuncia. Estou a pensar nessa evolução, quase a pensar em termos filosofantes, na tal dialéctica dos contrários, que me desviaria muito daquilo que eu quero dizer, até porque eu não quero dizer.
- Uma última pergunta, relacionada com o livro: qual seria a razão que te levou a lançares-te num projecto como publicar um livro de desenhos.
- Já muito ficou dito para trás que poderia concorrer para responder a isso. Mais pontualmente, tem a ver com o facto de tudo já estar mais ou menos desenhado e projectado sob esse pano de fundo da minha profissão. Quando me aposentei, de repente houve aquele hiato, aquele pequeno choque, e dei-me conta de que era uma belíssima altura para me lançar mais abertamente no tal projecto que já lá estava, mas que era condicionado pelo toque da campainha, pelo regulamento, pelas notas que tinha de dar, pela avaliação que era feita em mim. Eu estava despojado disso e podia fazer aquilo apaixonadamente, com plena entrega.
- Quando falo do livro, não estou a falar da obra, mas do livro em concreto, da publicação do livro, não da feitura do livro. Porque uma coisa é o Rogério fazer o livro em si, mas, daí a passar à etapa de publicar os desenhos num formato de livro, quais foram as motivações para poder tomar essa difícil decisão?
- As motivações lembram-me daquela história do sapo que esteve três dias a hesitar se saltava ou não saltava a um rego... Para que servem as pressas?... Aqui é a mesma questão: faço ou não faço. Por um lado, absolutamente ciente de que não é fácil editar, por outro lado ciente de que qualquer suspeita de que não vale a pena pode destrui-lo, porque ninguém tem a certeza de qual será o efeito. A intenção seria essa. Se eu realmente observo, se compro um papel para observar, se eu puder estar ao lado dos outros e se puder contribuir com alguma coisa para eles observarem... E, sobretudo, se eu pensar num comentário que me foi feito pelo meu editor e pelo meu amigo Diego, que foi a primeira pessoa que me falou no livro e nunca me perguntou, nem sequer aludiu alguma vez a dizer-me o que é que isto quer dizer aquele sacrossanto disparate do observador apressado e mediato, aquele Sr. Preguiçoso que não se quer dar ao cuidado de olhar, observar, tornar a observar, ir para casa, dormir sobre isso. Para mim, o facto de eu ter tido, pela primeira vez, essa experiência com o Diego... que diabo, este homem não teve nenhum subsidio para fazer este trabalho, não creio que ele vá receber mais no fim do mês... Ele teve um certo interesse em fazer isto. Acho que isso era aquilo que eu quereria que os outros fizessem também, que não viessem fazer a pergunta já está?, o que é isto?, mas que fizessem a sua leitura para eu próprio me debruçar outra vez sobre mim, e dizer é curioso como esta leitura coincide ou não coincide, ou me levanta novos problemas. Acusam-me, por vezes, de falar de mais. Mas foi a única vez em que eu falei de menos, porque estava tão fascinado pelo comentário, que ficaria para outra ocasião. Naquela altura, eu estava seduzido por uma série de observações que eram tecidas acerca do que lá estava embora me apetecesse dizer que não era isso - mas era esse desafio, esse quase anseio que eu teria de me justificar, como todos os outros fazem.
- Para terminar, uma ideia que sempre tive na cabeça: os desenhos do Rogério são desenhos abertos, não terminados, desenhos sempre em processo, porque podiam sofrer transformações ou modificações eternamente, não só pelo Rogério, mas por qualquer pessoa que quisesse intervir no desenho e que, se seguisse a técnica do Rogério, podia ser simplesmente como um desenho em eterno processo. Podia ser ou não?
- Não faço a menor ideia.
- Mas, relativamente ao desenho aberto...
- Estou completamente de acordo com a primeira parte. Mesmo quando eu às vezes me penalizo por certos desenhos... Podia dar exemplos, como a diferença entre o cartoon e a ilustração: o cartoon serve-se, muitas vezes, de uma legenda e a ilustração não deve ter suporte. Acontece que eu já fiz uma dessas ilustrações com meia legenda e comparei um desses desenhos tipo cartoon com a ilustração e não achei que um fosse superior ao outro. Aconteceu. Mesmo quando tem essa legenda ou quando, por uma transparência formal, me parece que está muito próximo de uma leitura que eu diria fechada, eu gostaria que não fosse assim. Parece-me que talvez seja, se pudéssemos falar um pouco de filosofia, como fugir, citando um grande filósofo e cientista, Bachelard, que dizia a verdade nasce apesar da evidência. Mesmo quando parece evidente, não é, está para além da evidência. Ora temos a ideia de que a evidência não fecha, acabou. A filosofia é isso. Hoje em dia, não é propriedade exclusiva da filosofia, é da ciência. O verdadeiro cientista é um filósofo, no sentido de ultrapassar esse apesar da evidência. Qualquer aprendiz de filósofo sabe que, em termos de progresso de pensamento, dantes colocava-se em relevo o erro, o não errar. Hoje, é o contrário. O erro tem um papel positivo. Longe de me satisfazer com a verdade, estou quase maquiavelicamente à espera do erro, porque seria, talvez, uma condição sine-qua-non para progredir.