versiones, versiones y versiones...renovar la aventura de compartir la vida con textos, imágenes y sonidosDirector, editor y operador: Diego Martínez Lora    Número: 50 junho/julho 2003


José António Gomes:

"Análise epistemológica da treta", de Sérgio Almeida, ou o culto da irrisão


 

Com efeito, a primeira das cinco narrativas que compõem o livro é formada pelas cartas que um ladrilhador dirige a um jovem ladrilhador, surgindo as insólitas reflexões do primeiro, de seu nome Anastácio, entremeadas de interpelações, insultos, conselhos e pedidos a esse você com quem se corresponde e a quem responde. «O mural da ética», a segunda narrativa, principia com uma pergunta dirigida a um vocês: «Já alguma vez conceberam o mundo como um espaço residual em que todas as formas se cruzam e multiplicam, dando origem a infinitas sucessões de matéria e seus derivados?» (p. 55). Por sua vez a terceira, intitulada «Johnny, o Taciturno», abre com uma apóstrofe – «Surpreendam-se, ó incautos!» (p. 79) –, deixando uma vez mais subentendida a forma vocês nas primeiras linhas.

Poderia dar outros exemplos, mas se saliento estes sinais discursivos de comunicabilidade, é apenas para sublinhar o paradoxo intencionalmente criado pelas narrativas de Sérgio Almeida, para o qual o título desde logo aponta. Aludindo no fundo, e sobretudo, aos palavrosos discursos dos seus narradores, maioritariamente homodiegéticos ou autodiegéticos – ou seja, também personagens – o autor não hesita em classificá-los como «treta», quer dizer, como um discurso de comunicabilidade, por assim dizer, débil.

Noutro plano, esta debilidade é já indiciada, como disse, pelo segundo segmento do título (da treta), que colide com a ambição contida no sintagma inicial (Análise epistemológica). Tome-se uma definição possível de epistemologia: «Disciplina que tem a ciência como objecto», a «epistemologia estuda de modo crítico os princípios, as hipóteses gerais, as conclusões das diferentes ciências para lhes apreciar o valor e o alcance objectivo. Ao fazê-lo, ela segue necessariamente ao lado da história das ciências (crises, caducidade das leis e teorias, aparecimento de novas hipóteses…) – a ponto de certos autores as assemelharem, admitindo que o centro da sua reflexão deve dizer respeito ao crescimento do conhecimento científico» (Durozoi; Roussel, 2000: 131-2). Michel Fichant (cit. por Angenot, 1984: 82), por exemplo, falará em «teoria da produção específica dos conceitos e da formação das teorias de cada ciência». Atente-se, agora, numa das acepções de treta – «Palavreado para enganar ou iludir. // Coisas sem importância; simples palavreado.» (Machado, 1991: 412) –, e conclua-se então que o título não só desvenda o seu carácter irónico e até auto-irónico, como aponta, no seu paradoxo (análise epistemológica versus coisa sem importância ou palavreado), para um traço fundamental da obra. Refiro-me ao desejo de provocar a irrisão que, naturalmente, só pode ser proporcionada por aquilo que é da ordem do irrisório ou que é susceptível de ser colocado nesse plano. Em Análise Epistemológica da Treta, é o que acontece até com a própria linguagem e, daí, a frequente segmentação de palavras para obter efeitos cómicos, o recurso a neologismos e mots valises ou, no último texto do livro, a representação de certas formas de pronúncia, a tender para uma escrita fonética.

Que se apresenta, então, como risível no livro de Sérgio Almeida? Desde logo, a circunstância de boa parte das histórias ser protagonizada por risíveis «pensadores», «escritores», «poetas». E que autoriza essa epígrafe inicial de um «A. Nónimo», em que alguém reivindica um estatuto, definindo-se desde logo como uma espécie de anti-Saramago («Quero ser um escritor com verve / Nada de memoriais e evangelhos / Um iluminado na sombra / Eis o que quero ser» (p. 9))?

Pois bem, em «Cartas a um jovem ladrilhador», o que surpreende é essa espécie de metadiscurso, hilariante, elaborado pelo autor das epístolas. O arrazoado de Anastácio sobre a profissão de colocador de ladrilhos é quase o de um teórico, de alguém que trabalha no campo da epistemologia, e que considera a sua actividade como herdeira dos «anseios revelados por insignes pensadores universais (…) da estirpe de Marx, Hegel e Feuerbach» (p. 19). O paradoxo instala-se, porém, devido à circunstância de esse discurso se nutrir também de insultos e humilhações infligidas ao correspondente, para não falar das constantes exigências de dinheiro que lhe são feitas. Mas, aparentando muitas vezes seriedade, o discurso acaba por quase a rejeitar (chega a assumir registos muito diversos, quase opostos, por vezes autênticos pastiches de outros discursos), como se nem Anastácio levasse a sério as suas retorcidas elucubrações. Estabelece-se assim um corrosivo contraste entre as Cartas a um Poeta (Rilke, 1971, ed. port.) – o hipotexto rilkeano –, dirigidas ao senhor Kappus, e o hipertexto, ou seja, estas «Cartas a um jovem ladrilhador», enviadas a um tal Krupps.

FUC (lê-se fuck?), o falhado filósofo/criador de morangos da segunda história, que aos seus pobres frutos lê textos de grandes vozes da filosofia e da literatura, tornando-os assim intragáveis de gosto, revela algumas semelhanças com Anastácio. Uma das diferenças reside no facto de ir preenchendo com a escrita o mural que rodeia a sua herdade: «A zona branca (ainda por preencher na totalidade) reúne os meus textos puros e optimistas; a negra, os escritos lúgubres; a vermelha, os sexuais. Das 17 tonalidades do mural, é, contudo, a zona castanha, ligada aos textos de carácter escatológico, a mais profícua.» (p. 67) Sentindo-se vítima do não reconhecimento como criador, a personagem do conto constitui também uma desapiedada figuração do escritor frustrado, cercado e perdido no verborreico labirinto do seu mural de «treta».

Já em «Johnny, o Taciturno», envereda-se por uma narração mais convencional que não deixa, todavia, de proporcionar momentos de elevada temperatura humorística, ao contar o rocambolesco percurso de João Fulgêncio – mais conhecido por Johnny –, Simão, o Símio, Pedrocas, o Salafrário, e Joanetes, o Seboso, membros de uma inominável banda de rock suburbana (Find the Crap, um achado de nome, em verrinoso trocadilho com o dos conhecidos Mind the Gap). O final não deixa margem para dúvidas quanto ao nível de qualidade da banda e do seu líder arvorado em poeta: «[Johnny] resolveu, enfim, tomar o passo decisivo da sua vida: matricular-se na escola primária para aprender a ler e a escrever.» (p. 107).

A este lídimo representante da «treta» literária e musical e, tal como todos os outros, da miséria do vivido, irá juntar-se um genuíno representante da «treta» policial: o detective de «O estranho caso de um caso deveras estranho», narrativa em registo parodístico, cujas matrizes são o policial negro norte-americano, com laivos de «pulp fiction», e os filmes «série B».

O conjunto fecha com «’Look Mom! Bob is on the air’ (Três – três! – tributos radiofónicos a Bob Marley)», exercícios de «treta» radiofónica satirizando os estilos de três estações conhecidas: a Antena 2 (Antena, Pois), a Rádio Cidade (Rádio Se Arde) e a TSF (TSV).

Numa escrita ágil, vocacionada para a exploração criativa do pastiche, da paródia e reveladora de inegável habilidade no domínio da criatividade linguística, Sérgio Almeida desafia-nos, em Análise Epistemológica da Treta, a entrar num mundo grotesco e demencial, cujos pilares são o humor negro, por vezes o nonsense, e sobretudo o gosto pela deformação, a caricatura e o excesso. Com estas armas, a sátira, no seu afã demolidor, pouca coisa deixa de pé, a começar pelos costumes, o universo literário, os mitos das culturas erudita e de massas e as respectivas linguagens (daí as alusões e referências culturais em que o texto é fértil 1), passando pelos discursos filosófico e político 2 e terminando nos media 3.

Uma última palavra para Paulo Moreira. As suas ilustrações souberam ir ao encontro do insólito clima ficcional criado por Sérgio Almeida, em cujas narrativas não são todavia poucos os reenvios para a insana realidade que nos circunda. Análise Epistemológica da Treta vem, por outro lado, inscrever-se numa tradição satírica a que pertencem textos tão diversos como as cantigas de escárnio e maldizer, Tolentino, O’Neill, Cesariny e outros, por vezes mais ácidos, como Alberto Pimenta ou sobretudo Luís Pacheco. O mesmo é dizer: há textos, no livro de Sérgio Almeida, que decerto figurarão, por direito próprio, em qualquer futura antologia do humor na literatura portuguesa.


Notas

1 Vejam-se as referências a Rilke (p. 50), a Britten (p. 57), a Ingmar Bergman e à toupeira Aleph (no segundo conto), ou ao labrador de nome Gorki (p. 111), para apenas apontar cinco exemplos entre muitos.

2 Especialmente em «Cartas a um jovem ladrilhador» e em «O mural da ética».

3 Sobretudo em «Look mom! Bob is on the air».


Referências bibliográficas

ANGENOT, Marc (1984). Glossário da Crítica Contemporânea. Lisboa: Comunicação.

DUROZOI, G.; Roussel, A. (2000). Dicionário de Filosofia. Porto: Porto Editora.

MACHADO, João Pedro (1991). Grande Dicionário da Língua Portuguesa, vol. III. Lisboa: Círculo de Leitores.

RILKE, Rainer Maria (1971). Cartas a um Poeta. Lisboa: Portugália (cartas datadas de 1903-1908; trad. de Fernanda de Castro).


(*)José António Gomes, professor e crítico português.


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