versiones, versiones y versiones...renovar la aventura de compartir la vida con textos, imágenes y sonidosDirector, editor y operador: Diego Martínez Lora    Número: 50 junho/julho 2003


Sérgio Almeida:

Três excertos de "Análise epistemológica da treta"


 

JOHNNY, O TACITURNO

 

Não foi fácil a adolescência de Fulgêncio, aliás Johnny, mais preocupado que estava em impor os seus ideais anarco-ditatoriais – estranha ideologia que assentava na igualdade plena dos indivíduos cuja altura excedesse os seus 198 centímetros – do que em seguir os beatíficos conselhos de Dona Aparecida e do Senhor Gusmão, o reverendíssimo (cruz credo!) patriarca familiar que fazia da apanha do atum o seu ganha pão finissecular.

As sucessivas mudanças vocacionais indicavam quão turbulento era o seu espírito. Primeiro ambicionou ser Átila, O Huno, depois cozinheiro e finalmente tentou a mais árdua das missões: ser ele próprio.

Em plena adolescência, Johnny, movido a álcool e a nicotina, remoía sensações jamais vividas, episódios que deflagravam na sua mente com a violência das intempéries e que, não raras vezes, o levavam a desejar ter nascido sob outra forma qualquer. Um cacto, por exemplo! Quanta coragem e desprendimento emanavam daquela mal urdida planta espinhosa, alvo de sucessiva chacota por parte das suas venerandas colegas de espécie. Também ele gostaria de fazer das paragens obsidiantes do deserto o seu refúgio, contemplar diariamente o céu atapetado de estrelas e conhecer uma por uma as regiões hemisféricas da mente. Esteve lá perto uma vez, reconheça-se, impelido pelas manifestações dionisíacas próprias da juventude. Em pleno transe anfetamínico, berrou com a virulência dos malditos que o mundo era uma invenção sua. O disfarce perfeito para ludibriar os que o rodeavam encontrara-o ele sob uma forma que nem o mais versado especialista em mitologia ousaria desconfiar. Sim, quem insinuaria que Deus se escondia sob o refúgio de um simples delinquente, que passava a vida entre a peixaria imunda do Mestre Locas, a recolher mais elementos para a sua preciosa colecção de alforrecas, e o não menos encardido salão de jogos de Fu Sheng, um negociante oriental que alimentava secretamente a esperança de um dia vir a possuir o seu próprio casino ilegal?

 

 

O MURAL DA ÉTICA

Já alguma vez conceberam o mundo como um espaço residual em que todas as formas se cruzam e multiplicam, dando origem a infinitas sucessões de matéria e seus derivados? Eu não. Acredito, sim, que cada um de nós – mesmo aqueles que praticam esqui alpino na tentativa de ascender aos céus – tem objectivos precisos a cumprir nesta porção de terra a que chamamos Terra.

Os meus, por exemplo, são a escrita e a apanha de morangos silvestres. Sobre este último modus vivendi continuam a subsistir tremendos preconceitos, o mais pequeno dos quais assegura que a nossa postura profissional – no acto da apanha, o traseiro deve estar bem direccionado para o céu, descrevendo um arco de 180 graus – indicia preferências sexuais contrárias aos designados bons costumes.

E, no entanto, para se ser um apanhador eficaz é necessária uma visão do mundo tão ecléctica que um especialista em decatlo perde em toda a linha para a nossa versatilidade.

 

O ESTRANHO CASO DE UM CASO DEVERAS ESTRANHO

 

Como conheci Eleanor Kitt, a laureada escritora de romances policiais como “Confissões de uma Abóbora Niilista” ou “O Cabo da Vassoura Assassino”?

Racionalista convicto que sou – embora só consuma a ração de Gorki, o meu labrador, em momentos de franca desopilação –, não acredito nesse último resquício do obscurantismo que é o livre arbítrio. Mas foram mesmo esses caprichos que nos juntaram na mesma pedicure. Por motivos diferentes, como é óbvio: ela recorria aos serviços da massagista Tissiana na esperança de descobrir na planta do pé o mapa astrológico que teimava em não se mostrar nas sucessivas visitas que fazia ao seu guru – um bisonte de nome Rajiv –, enquanto que eu, menos dados a filosofices, estava firmemente disposto a alterar o meu odor pedestre de Camembert para Brie, desde que lera numa revista a informação de que este tipo de queijo estaria a ser alvo de uma forte procura por parte de uma abastada clientela nipónica (questões afrodisíacas, acho).

O caso nada teria de especial se Kitt não fosse dotada de um olfacto estupendo, daqueles cujo poder faz estremecer os que usam Chanel nº 19 tentando fazer crer que na realidade é o Chanel nº 5.

Contava-se inclusivamente que a sua selecção masculina – quem nunca ouviu falar nas orgias “a la Kitt”? – era baseada nos odores. Os tablóides costumavam noticiar relatos sórdidos desses convívios, durante os quais era possível encontrar lado a lado o tratador de cavalos do circo local, o sacristão da aldeia mais próxima ou um obscuro ministro qualquer que resolvia aventurar-se fora dos gabinetes e, deste modo, provar às más línguas que não lambia apenas botas mas também saltos altos.


(*)Sérgio Almeida, escritor e jornalista português. Mora actualmente em Espinho.O livro Análise epistemológico da treta, foi publicado pela Quasi editores, 2003.


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