versiones, versiones, versiones  y versiones...renovar la aventura de compartir la vida con textos, imágenes y sonidosDirector, editor y operador: Diego Martínez Lora Número: 51 / agosto - setiembre 2003


Entrevista a E. M. De Melo e Castro
(
por MARIA VIRGILIA FROTA GUARIGLIA * e JORGE LUIZ ANTONIO**)


            Tarefa bastante desafiadora foi a que nós nos propusemos fazer: entrevistar o poeta experimental português Ernesto Manuel de Melo e Castro, nosso professor, amigo e guru. Perguntar o quê?  Que aspectos de sua vasta obra escolher?

             Movidos por  Máquina , um de seus poemas, encaramos tal empresa:

 

            MÁQUINA    

 

            Luzes de mais

            ofuscam os meus olhos.

            Luzes de menos

            fazem-me doente.

            Dêem-me um dispositivo automático

            para regular o sol

            ao nascer, no zénite e no poente. (In Trans(a)parências)

 

            Optamos, então, por procurar luzes: elaboramos questões para entender algumas facetas da poesia experimental, especialmente as que tratam das relações da poesia com o uso do computador.

            Ensinando sempre, Melo e Castro, em seu apartamento na Avenida Angélica, no dia 19 de maio de 2001, discorreu, em prosa agradável e bem articulada, sobre os assuntos por nós apresentados.

            A idéia da entrevista, além de seu aspecto informacional e instrutivo, ocorreu-nos como um pequeno tributo ao professor, ao poeta e ao amigo; uma espécie de despedida, já que Melo e Castro, no mês seguinte, deixaria de lecionar na USP e voltaria, talvez, definitivamente para Lisboa.

            Levou um tempo para que pudéssemos transcrever a gravação e submetê-la ao crivo  do poeta.

            Valeu, com certeza, a espera, já que o resultado foi muito positivo.

***

            E. M. de Melo e Castro nasceu na Covilhã, Portugal, em 1932. É engenheiro têxtil aposentado, e autor de livros sobre o assunto, designer têxtil e professor dessa disciplina, além de poeta e ensaísta.

            Praticante e teórico da Poesia Experimental Portuguesa nos anos 60, introdutor da Poesia Concreta (Ideogramas, 1961), é considerado pioneiro da videopoesia (Rodalume, 1968). Professor convidado para ministrar cursos de Infopoesia e Ciberpoéticas da Transformação, no Programa de Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( 1996-1997) e professor contratado para ministrar cursos na área de Estudos Comparados de Literatura e Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo até 2001, com tese de doutorado em Literatura Africana, é autor de inúmeros livros, dentre os quais: Finitos mais Finitos, Literatura Portuguesa de Invenção, Visão Visual, O Fim Visual do Século XX, O Próprio Poético, Poética dos Meios e Arte High Tech, Dialéctica das Vanguardas, Algorritmos, Trans(a)parências,  dentre outros. Infopoesia: produções brasileiras está disponível na seguinte url:  http://hosts.nmd.com.br/users/meloecastro/.

 

Maria Virgília Frota Guariglia e Jorge Luiz Antonio

 

MVFG – Você é um poeta experimentador por excelência; sem ter abandonado totalmente a poesia escrita, viaja também pelo vídeo e infopoema. Conte-me um pouco de suas experiências pessoais mais significativas neste, se assim o podemos chamar, rito de passagem do verbal ao visual.

 

EMMC - Bom, é um fato que eu creio que está comprovado pelos numerosos livros e produções de poemas visuais, videopoemas, infopoemas, poemas em prosa, poemas em verso, etc. Toda esta minha produção, que já é bastante vasta, talvez até demasiado vasta, mostra que, para mim, trabalhar o verso, trabalhar a prosa, trabalhar o signo não verbal, quer com meios gráficos convencionais ou com meios tecnológicos avançados, faz parte de um processo total que eu chamo poiésis, isto é, a produção do artefato, a produção do objeto, mas do objeto novo, evidentemente.  E é justamente nesta inovação, ou nos aspectos transgressivos em relação às normas estabelecidas para a produção de versos, de poemas em prosa ou até mesmo de poemas visuais, é na transgressão que, para mim, se encontra o ponto crucial dessa produção. Mas, de fato a minha atitude criativa, minha atitude mental, emocional, se quiserem, é exatamente a mesma; eu tanto escrevo um soneto, como faço um videopoema, ou faço, digamos um storyboard para um videopoema: é uma criação, se quisermos dizer, textual que, para o meu sistema de produção, não tem diferenças. Evidentemente que os meios de trabalho são diferentes, mas eu me refiro à atitude interior a qual eu suponho seja o que a sua pergunta procura. Essa atitude interior de invenção e de poiésis é que é a mesma. Quanto ao rito de passagem parece-me que ele não é do verbal ao visual ... inclusive, eu acho que toda criatividade é um rito de passagem, na medida em que é dinâmica, em que não é estática, na medida em que passa de um estado de impresciência (pré-poética ) para um estado de materialização ou de atualização, se quisermos, de uma virtualidade, de uma potencialidade. É essa virtualidade que ficará contida no objeto que se produz, no objeto que resulta e que, por isto mesmo, o chamamos de poema.  Eu insisto na palavra poema, justamente porque todo este processo, para mim, é um complexo processo de poiésis, no sentido grego mais rigoroso, isto é, o de fazer aquilo que ainda não foi feito. Creio que respondi, ou enfim, tentei responder à sua pergunta.

 

MVFG – Uma constante em sua fala crítica é a busca da produção de arte em sintonia com os avanços da tecnologia, relevando e mesmo revelando uma espécie de hominização da técnica. Gostaria que você discorresse um pouco mais sobre esta busca de, digamos, um novo humanismo, em que arte e tecnologia estejam integradas, que a mim parece ter sido, nestes últimos anos, o fundamento das suas teoria e prática poéticas.

 

EMMC – Bom, a minha resposta é evidentemente simples, pois estou de acordo com o que você acaba de dizer, mas devo dizer que eu me considero, de fato, um artista.  Não abdico da palavra arte, não abdico da palavra artista, nem abdico da palavra poema.   Mas, simplesmente, talvez se possa dizer, um tanto ironicamente, que eu seja um artista “turbinado”, pois esta é realmente a única possibilidade de  resposta, perante os ranços tecnológicos, os ranços da ciência, mas também os ranços e as transformações, digamos assim, da própria percepção humana, pois esta transformação existe de fato, (por exemplo qualquer ser de cem anos ou mesmo de 50 anos atrás se fosse transplantado para o momento presente e se caísse numa cidade como São Paulo, ou como São Francisco, ou mesmo como Paris ou Londres ficaria de tal modo assustado com as transformações, com a aceleração, com a complexidade, com o caráter fractal da nossa vida que é uma vida dispersa, fragmentada e estressada ...  então a nossa percepção modificou-se e é isto que eu chamo de “turbinado”, ou seja, um artista equipado e transformado com uma percepção diferente daquela de um mundo mais pacífico, mais calmo, mais ordenado, menos turbulento.  A palavra turbulência parece-me extremamente importante para classificar esta transformação da percepção; a nossa percepção que hoje é caleidoscópica e turbulenta.  Portanto, uma noção estática de arte parece-me completamente inadequada. Mas, entretanto, é necessário redefinir a palavra arte, redefinir a palavra artista, redefinir a palavra poema, porque hoje o que está em jogo nessa produção dita criativa, ou inventiva é realmente uma provocação à própria fruição estética. A fruição estética hoje é uma provocação e esta provocação é produzida pelos próprios homens, somos nós próprios que produzimos esta provocação; portanto, continua a ser uma manifestação do nosso espírito, da nossa transcendência, da nossa capacidade de sempre recuperá-la; Assim a palavra artista deixou de ser estática para passar a ser dinâmica, a ser inquieta.  Eu tenho a impressão que inquietação é talvez a palavra que melhor pode, não direi caracterizar, mas sinalizar aquilo que poderá ser um artista no começo do século XXI.  Inquietação com todo o mundo turbulento em que vivemos.  Ora, aí insere-se nesta inquietação uma, digamos, preocupação profunda com a própria humanidade do homem: será que a humanidade do homem está ameaçada? Evidentemente, os existencialistas, já nos anos cinqüenta do século XX, punham este problema, esta inquietação, esta instabilidade que resultou evidentemente de todo o trauma que foi a segunda guerra mundial e a explosão das bombas atômicas que causaram realmente um sentido de precariedade e de efêmero nas mentes humanas. Mas nós hoje somos capazes de nos destruir alguns centos de vezes; não nos basta uma só destruição; somos capazes de destruir o mundo todo centenas de vezes; isto é um verdadeiro absurdo! Outro problema vem-se agudizando agora com a descoberta do genoma, revelando uma diferenciação genética praticamente mínima entre, por exemplo, o homem e o chimpanzé (o homem tem trinta mil genes, o chimpanzé  terá vinte e oito mil),  Se uma mosquinha drosófila tem apenas menos 30 ou 40% de genes do que o homem, portanto, onde é que está o homem?   Este é um problema fundamental. É que possivelmente toda a questão não está só no genoma  mas sim, ainda mais além do conhecimento científico atual. Assim surge um novo tipo de inquietação inquietação como realmente uma situação de um novo humanismo, mas um humanismo inquieto, instável e principalmente cria, digamos, uma nova relação entre o homem e o animal.   E Darwin volta a ter toda razão; a ligação homem/animal é uma ligação que se recoloca com uma grande premência neste momento, mas ao mesmo tempo, temos outra ligação: a do homem com a máquina.   Então temos um triângulo entre homem, animal e máquina que é realmente aquilo que pode definir uma idéia de um novo humanismo para o século XXI, ou mesmo para a época que a gente já está a viver. Evidentemente que já Descartes considerava que o homem era uma máquina, desligada de qualquer espiritualidade; de fato, a espiritualidade também é, por outro lado, uma nova espiritualidade, uma nova maneira de entender a transcendência; é também característica do tempo em que vivemos e resulta também desta tal inquietação: é uma outra solução para esta inquietação.   Mas quer me parecer que é no triângulo homem/animal/máquina que nós vamos encontrar, talvez, as definições do que pode ser o nosso próprio corpo e do que é que pode ser a nossa própria alma.   E é muito interessante se nós considerarmos estes esquemazinhos (que depois eu vou lhes dar), se nós fizermos um triângulo com o homem, animal e máquina, veremos que as ligações homem/máquina estão na ordem do dia com a robótica, e com os andróides e com os cyborgs que começam ou começaram praticamente com, por exemplo a Eva Futura do francês Williers de Lisle Adam, obra em que o autor imagina uma espécie de cyborg que é a mulher ideal  combinando todas as virtudes de uma mulher clássica com a mulher transcendente, com a mulher inovadora, dentro de um mundo machista; portanto cria um paradigma ideal que é um cyborg idealizado.  Mas temos um outro aspecto, este negativo  que é o Frankstein, o aspecto horroroso, que é curiosamente criado por uma jovem mulher. Estes dois aspectos da transcendência do homem através da ligação com a máquina cai em cheio  naquela idéia do sublime ( sublime sendo o que está para lá daquilo que a gente pode sentir com os nossos sentidos). Mas não nos esqueçamos de que a ligação do homem com o animal é, também, extremamente importante. E, por exemplo, na mitologia grega temos as sereias, os centauros e os faunos que são uma ligação homem/animal que, sendo uma ligação mitológica, também é uma ligação ao sublime.  Portanto, talvez seja justamente nessa idéia de sublime (aquilo que está para lá do homem) que reside esta nova espiritualidade e, daí, um novo humanismo. Mas resta uma ligação que não foi, talvez, ainda estudada: é a ligação animal/máquina. E a ligação animal/máquina leva-nos para o robô biológico, não só o robô mecânico (máquina/homem: cyborg), mas o robô puramente biológico, o robô feito de uma ligação íntima entre as unidades de carbono e as unidades de silício, que já está  começando a ser explorada não só pela ficção científica, como mesmo pela própria  ciência.  Onde é que fica o corpo do homem? O corpo do homem é exatamente o hexágono formado no interior do triângulo do meu esquema ; é um corpo virtual: o homem, de fato, vai a caminho da desmaterialização a da virtualização de seu corpo.  Bom, este parece-me ser o novo humanismo de que você me provocou para falar. Evidentemente que estamos muito no começo e existem sobre isto teorias extremamente importantes, como, por exemplo, a teoria proposta num livro que estou nesse momento a ler e que é dos livros mais fascinantes com que eu contatei nos últimos tempos e que se chama Mulher Digital de Sadie Plant: (uma obra realmente fantástica) que trata da ascensão, neste clima do corpo virtual, do desaparecimento do homem e a (sua) transformação num outro ser, num outro corpo que tem a mulher como matriz.  A mulher que é mãe, que é matriz, que é mundo, que é terra e realmente eu acho que já estamos a começar a dar os primeiros passos neste sentido.  Pode-se dizer que eu dei uma resposta um pouco futurista ... ou um pouco transcendente, se quisermos, mas neste momento eu penso este problema assim, porque entrarmos no velho humanismo  tipo século XIX  ou no humanismo renascentista, ou então irmos até para o Protágoras e dizermos que tudo o que existe diz respeito ao homem, “o homem é o princípio e o fim de todas as coisas”,  parece-me que é como chover no molhado, porque agora é o próprio homem que começa a estar em transformação, e o humanismo será de uma maneira completamente diferente.

 

MVFG – Você que tem uma mente criadora estético-investigativa que elementos novos, diferentes julga estarem oferecendo para a sua prática poética estes também novos caminhos digitais com seus suportes, ferramentas, etc?

EMMC – Bom, a passagem da poesia visual gráfica, jogada no papel para a poesia visual virtual que só existe nas telas das máquinas informáticas é uma passagem digamos drástica, porque se passa do peso do átomo do papel e do átomo da tinta e até do peso dos instrumentos escreventes, digamos assim, para a virtualidade dos bits e a virtualidade dos pixels, ou seja, passamos da matéria para a energia e isso dá uma transformação radical, de fato. Enquanto Mallarmé se interrogava perante a página em branco e criava realmente, ou melhor, recriava uma dimensão espacial nessa página ( por onde passavam as duas dimensões, transformando o texto numa partitura, como ele próprio dizia), o poeta de hoje, o infopoeta, o videopoeta ou o tal poeta turbinado, de certo modo, confrontam-se com uma virtualidade que se apresenta como uma janela aparentemente retangular ( a tela do computador ), digamos assim  como  uma nova versão da página, mas que o não é, visto que os elementos de transformação, os elementos plásticos de manipulação, as dimensões que estão envolvidas ultrapassam muito as duas dimensões da página branca do papel.  E esse ser que utiliza estes novos meios vem a confrontar-se com situações verdadeiramente inesperadas para o escritor e para o poeta convencional..  Talvez algumas dessas situações já sejam  conhecidas dos cineastas, mas também é de outra maneira que as coisas se fazem. E se me perguntar especificamente quais são os elementos gramáticos, digamos assim, que são diferentes do trabalho de Mallarmé e mesmo da poesia concreta ortodoxa; isto é, quais os elementos de diferenciação da infopoesia, da videopoesia ou da holopoesia direi que agora estamos a trabalhar com o movimento e a própria transformação das formas e, por isso dos significados, em  dimensões que podem ser até mesmo fractais. As duas dimensões, as três dimensões e as dimensões intermédias fractais

podem ser dadas simultaneamente , indo refletir-se na qualidade, na própria categoria estética do produto.   Como o Jorge Luiz Antonio se referiu, num de seus textos, estamos talvez perante um gênero novo. E deverá ou não deverá continuar a chamar-se poesia?  Bom, eu acho que sim; deve-se insistir na palavra poesia, porque poesia ao fim e ao cabo é a grande projeção virtual da mente humana e nas novas ciberpoéticas continuamos a ter essa projeção virtual da mente humana, mas agora é o virtual do virtual, através de alguns elementos gramáticos importantes, como por exemplo, o movimento, a velocidade, o rigor, a variabilidade e simultaneidade espácio-temporal e a transformação.  Uma coisa que a gente não pode fazer é pegar um poema de Mallarmé e transformá-lo, ou pegar um poema concreto da fase ortodoxa ou um poema visual feito com papel e tinta, com colagens ou qualquer outro método gráfico mais ou menos convencional a gente não pode transformá-lo; se o transforma altera-o ou o destrói;  agora, aqui não: as transformações são genéticas; se a gente destrói o poema produz outro e aí é que está a grande possibilidade deste trabalho que não acaba nunca mais e quem tem um pouco de experiência ou muita experiência ( como vocês dois têm e eu também já vou tendo) sabe perfeitamente que uma pessoa começa com um poema que já fez há uns tempos, chama-o para a tela do computador, começa a trabalhar e faz outro que não tem nada a ver com o anterior.  Portanto a transformação é uma coisa mágica, alquímica, se quisermos (risos).  E não tem fim, não tem absolutamente fim, porque o que pode vir a resultar desta transformação é o inesperado, é o desconhecido. E se quisermos usar uma terminologia já nossa conhecida, é o novo.  Eu costumo dizer que o novo é o que não existe; o novo não existe nunca, porque quando se materializa ou se virtualiza deixa de ser novo ( risos). Bom, e isto é posto muito em evidência no trabalho com estes meios virtuais, digamos, que podem ser considerados como uma nova fase da alquimia e eu considero que é mesmo uma nova fase da alquimia, visto que as formas são sempre aspectos ilusórios de algo que está para além delas. Bem, acho que respondi, enfim, assim, assim ( risos...).

 

MVFG – Sob que aspectos poderíamos comparar ou não o trabalho do cérebro humano com o do computador?  Na sua opinião, a tecnologia digital pode desempenhar que papel importante nas formas de cultura que ainda estão por vir?

 

EMMC - Bom, esta pergunta dupla que você faz daria direito a um livro dalgumas centenas de páginas, porque você cai em cheio no problema da inteligência artificial e no problema digamos, de uma suposta oposição entre analógico e digital.  Vamos ver se conseguimos dar alguma resposta...   Se nós compararmos aquilo que um computador pode fazer com aquilo que um cérebro faz, talvez a gente fique com uma idéia um pouco melhor justamente em relação ao que você pergunta aqui: sob que aspectos poderíamos comparar ou não o trabalho do cérebro humano com o do computador. Ora, de uma forma muito resumida, o computador tem duas características que são específicas: uma é a velocidade do processamento e outra é o rigor do processamento através de sucessivas operações aritméticas simples. O computador, em termos de operações lógicas, baseia-se na matemática; e na matemática, o computador realiza de fato processos combinatórios, processos de permutação, processos de links, ou seja, ligações analógicas entre  os componentes de uma bateria que constituem a sua memória, o armazém ou magazine de sua memória; pode realizar procuras seletivas, pode realizar seriações, pode realizar randomizações, pode realizar operações caóticas,  e classificativas com uma rapidez e um rigor extraordinário.  O cérebro humano, por seu lado, é capaz de operações de raciocínio tais como a dedução, a indução, a abdução, a analogia, mas também o cérebro humano pode realizar e realiza operações de seriação, de combinação, de permutação, de cálculo, mas muito mais lentamente e com possibilidade de erro.  Quando o computador realiza operações que o cérebro humano também pode fazer, diremos que ele realiza mais rapidamente do que o cérebro humano, por exemplo operações de cálculo, operações matemáticas, como já disse, e com grande rigor, não se engana.   Se o computador se engana é porque está avariado e se está avariado há duas soluções, ou se arranja, ou se deita fora, coisa que não se pode fazer ao cérebro humano; se o cérebro humano erra num cálculo, refaz-se o cálculo, não se deita fora o cérebro, mesmo porque não há outro para o substituir no mesmo ser humano ( risos...).  De modo que há diferenças fundamentais no trabalho que o cérebro pode fazer e no trabalho que o computador faz.  Mas as coisas não ficam por aí. Não há dúvida que uma das operações mais extraordinárias que o cérebro humano faz é o salto abdutivo,  que é a grande operação produtora do novo e do inesperado; é o assalto à lógica, que o Peirce estuda muitíssimo bem, brilhantemente até.  Por outro lado, o cérebro humano tem uma deficiência que é talvez a sua grande qualidade: a capacidade de errar.  O erro no raciocínio, o erro no cálculo, o erro em qualquer operação feita, pode ser o abrir de novas portas, pelo inesperado.  Pode ser ou não ser evidentemente, mas o que é extraordinário é que o cérebro humano tem capacidade de distinguir quando é e quando não é.  Ele tem uma capacidade judicativa que o computador ainda não tem.  Por outro lado, esta capacidade de julgar o próprio erro que podemos chamar de capacidade judicativa e crítica, abre a porta para a avaliação do novo, a avaliação da criatividade, do resultado da invenção, se quisermos assim, ou da criação (entre invenção e criação acho que não vale a pena estarmos a criar grandes diferenciações).   Mas há uma outra coisa extraordinária que resulta disto tudo e que o computador, tal como ele é, como o conhecemos hoje  e com nós trabalhamos com ele, ainda não consegue realmente abarcar que é aquilo que Abraham Moles chamou “as ciências da imprecisão”.  É certo que sem o computador,  com a sua enorme velocidade de processamento e de rigor, a ciência do caos não poderia ter-se desenvolvido e atingido a importância que hoje tem em quase todos os ramos do conhecimento e da ciência.

Mas mesmo assim ainda há limites. E aí é que as coisas começam a complicar-se. É que há neste momento algumas tentativas para ultrapassar o impasse em que as máquinas computacionais estão neste momento.  Quer dizer, os computadores há alguns anos que não apresentam evoluções propriamente naquilo que são capazes de fazer; apresentam evoluções na velocidade do processamento, na capacidade de armazenagem, na capacidade das memórias, mas realmente o processo de computação não mudou e não há dúvida que aí temos, digamos, as grandes virtualidades do digital, ou seja, do sistema 1- 0, mas também as suas limitações: estamos a esbarrar nos limites das limitações do digital.  Então há várias tentativas: uma tentativa que está neste momento a ser explorada é a do computador quântico: o computador quântico é um computador que assenta na teoria dos quanta e a teoria dos quanta é justamente a teoria da instabilidade da estrutura da matéria, que assenta nos aspectos energéticos da constituição da matéria e, portanto, é capaz de operações do tipo abdutivo, é capaz de dar saltos imprevisíveis no raciocínio e este computador é uma coisa que vem aí, a caminho; não vai demorar.  Por outro lado há aquilo que por exemplo se anuncia num número recente da revista Scientific American, em que se mostra uma tela de um computador onde está escrito I know what you mean ( eu sei o que você quer dizer).   É  um computador em rede, rede de tipo internet, que sabe reconhecer o significado de certas proposições, em comparação, evidentemente, com um enorme estoque de informações e uma rede extremamente complexa de links que podem levá-lo a simular o reconhecimento do significado das composições ou das propostas. A isto se chama justamente a rede semântica (semantic web) que será um dos eventos absolutamente fascinantes previstos para a internet, mas que resulta na acumulação de informação e na complexidade das redes e na possibilidade de o computador, por estabelecimento de links e por estabelecimento de seriações e seleções, conseguir simular o entendimento do significado de determinadas frases e determinadas propostas.  Bom, isto é realmente um avanço extraordinário porque o evoluir da consciência humana atualmente parece estar caminhando no mesmo sentido, ou seja, hoje, digamos assim, pretende-se entender o que é consciência e autoconsciência (que é um dos elementos diferenciadores entre homem e máquina), na acumulação de memórias remotíssimas e de memórias profundíssimas que o homem acumulou desde os tempos arqui-pré-históricos.  Quer dizer, a idéia é de que a capacidade de o homem se reconhecer como homem e da pessoa se reconhecer a si própria, como sendo ela própria, que é a consciência, resulta de uma memória acumulada desde os tempos mais imemoriais, desde os primórdios do homem mais primitivo. Resíduos de memória que foram se acumulando e foram constituindo redes extremamente complexas e que são transmissíveis biologicamente por um processo ainda completamente desconhecido, porque o que hoje estou a dizer ainda está absolutamente no campo das hipóteses e o homem é capaz de se reconhecer por um processo justamente de linkagem e de comparação com tudo o que lhe aconteceu para trás: está embutido no seu inconsciente, ou talvez até no transinconsciente.  Se Jung fosse vivo hoje deveria estar extremamente satisfeito, porque esse será realmente o inconsciente coletivo que nunca se conseguiu definir, nunca se conseguiu ter uma definição lógica e do qual as pessoas  diziam não existir porque não havia uma definição para isso;  ora justamente o não haver uma definição para isso é que é realmente o fundamental, porque quer dizer que ainda há mais para lá dele. As categorias freudianas de consciente, subconsciente e inconsciente são, perante essa nova concepção, teorias puramente superficiais. Dentro do cérebro humano existe uma capacidade de memória residual que transcende tudo isso. Agora, é muito interessante pensarmos que esta web semântica, esta rede semântica que está neste momento a começar a ser pensada e a ser elaborada virtualmente (ainda não existe) vai exatamente no mesmo sentido, embora evidentemente com um escopo muito mais reduzido do que propriamente o do cérebro humano. A resposta à pergunta de caráter metafísico que se punha ainda há poucos anos: será o cérebro humano capaz de reproduzir outro cérebro sem ser por meios biológicos (os mecanismos biológicos deram-nos essa faculdade absolutamente extraordinária de fazer outros cérebros, outro ser com o seu próprio cérebro humano, e nós até incluímos isto na clonagem (hoje estamos às vésperas de clonar seres humanos e de começar a responder ao problema da derrota da morte, digamos assim, pelo menos a morte genética é capaz de já estar vencida, visto que os seres humanos poderão de fato perder o seu corpo, mas o seu conteúdo genético continua. Isto na clonagem. Mas voltando um pouco, a pergunta que se fazia, há uns anos, era:  será o cérebro humano capaz de produzir com elementos não humanos um cérebro humano? E havia quem dissesse que sim e quem dissesse que não. Evidentemente quem dizia que sim respondia : ainda não temos os meios para isso mas vai ser possível com o desenvolvimento da ciência. E os que diziam que não respondiam: Nunca as capacidades do cérebro humano poderão ser replicadas por materiais que não sejam orgânicos. Hoje as perguntas começam a ser respondidas no aspecto que eu frisei há pouco e eu tenho para mim que o cérebro humano vai poder ser replicado justamente naquela simbiose entre o ciclo do carbono e o ciclo do silício, ou seja, entre o homem como animal e a máquina. Bom, é isto.

Há uma parte que eu não respondi ( leu a segunda parte da pergunta): evidentemente que a tecnologia digital é, de fato, um grande avanço, quer na velocidade, quer na precisão, quer na qualidade das operações que se podem realizar, mas conforme o meu mestre Abraham Moles dizia, enquanto os computadores funcionarem numa base binária eles não vão avançar; é preciso entrar numa base ternária. O computador de base ternária? Que eu saiba não há ainda nenhum programa que esteja a pensar nisto.  Foi-se pelo lado do computador quântico, vai-se pelo lado da semântica, realmente tentando explorar ao máximo a tecnologia digital, mas estou convencido que ao meio do século XXI, vai-se chegar outra vez a um impasse e então teremos de passar para a base três; então teremos o computador trigital (risos).

 

MVFG - A arte sempre foi interativa (sempre recebemos o que vemos, ouvimos, tocamos,etc.), mas a interatividade da arte computacional tende a ser diferente. Sendo também um infopoeta, você concorda com essa afirmação? Sob que aspectos?

 

EMMC -  Bom, a interatividade, de fato, é só uma e é sempre diferente, isto é, o conceito de interatividade é um conceito que se refere à capacidade de dois ou vários dialogantes alterarem os seus procedimentos ou programas como reação recíproca. Portanto, a interatividade que existe no teatro e que existe, por exemplo, numa aula, ou que existe em todas as manifestações orais tradicionais das civilizações sem escrita, etc. é, de fato, a mesma interatividade de hoje. É o mesmo, que hoje começa a propor-se em programas computacionais. E não há dúvida que, se há alguma possibilidade de que a internet venha a ser um instrumento criativo, coisa que neste momento não é, (a internet é apenas um instrumento informativo, de acumulação de dados e de vias de comunicação, portanto não é um instrumento de conhecimento) será por uma intensa interatividade. A interatividade é um meio de provocar a modificação do conhecimento, ou a modificação do saber e a internet pode realmente vir a promover o avanço da interatividade e também alguns programas de computador podem já propor uma interação, ou seja, uma interferência entre o próprio computador e o operador.  Mas há também a interatividade própria do processo computacional.  Isso é uma coisa que todas as pessoas que realizam uma simples infopoesia conhecem perfeitamente, que é a aceleração da máquina, a rapidez e a precisão da máquina gerando uma tensão entre o operador, o programa e a própria máquina : o processo acelera-se de uma tal maneira, o processo torna-se realmente tão intuitivamente interativo que o operador, a certa altura, começa a fruir a máquina, faz esta operação, depois faz aquela, depois faz a outra, mais outra e ao cabo de realizar sete, oito ou dez operações, já não se lembra, é incapaz de reconstituir o processo, absolutamente incapaz de reconstituir o processo e começa a fazer coisas numa interatividade com a máquina e aí surge uma coisa extremamente importante: é que em determinados momentos de grande aceleração e de grande envolvimento nesse processo poderão começar a surgir coisas que são manifestações do subconsciente do operador.  Isto já me aconteceu várias vezes; não tenho dificuldade nenhuma em dizê-lo, nem tenho receio nenhum em dizê-lo: são momentos abdutivos extraordinariamente arrepiantes, por vezes, como a velha história dos bisontes que é absolutamente paradigmática e que está ali (mostra), na parede, o resultado.  Eu estava num momento extremamente baixo, de baixo teor criativo, mesmo até depressivo, comecei trabalhar com o computador e durante uma hora não surgiu absolutamente nada, nada de esteticamente aproveitável, nada de interessante, nada que fosse diferente. ( Estava usando o Adobe Photoshop ).   A certa altura do processo algo começou a aflorar e apareceram os bisontes.  Ora, eu andava nesta altura muito fascinado com as pinturas rupestres  de Vila Nova de  Foz Côa,  descobertas no norte de Portugal e isso era uma coisa que estava no meu subconsciente:  eu estava a sonhar com bisontes e com pinturas rupestres e com desenhos rupestres, e tenho uma paixão por tudo o que seja arte rupestre, porque acho que a arte rupestre é o grande paradigma do pensamento humano.   É aí que a gente se confronta com o animal e com a natureza, e que as coisas começaram.  Bom, e de repente apareceram os bisontes na tela, e de onde é que eles vieram?  Vieram do meu subconsciente.  Bom, portanto, a interatividade é um aspecto extremamente importante na criação da infopoesia, mas talvez isto não seja mais do que uma outra manifestação daquilo que os surrealistas chamavam de escrita automática, mas muito mais complexa e com resultados muito mais evidentes.  Mas como é que as coisas aparecem, como é que o nosso subconsciente se “comunica” com a máquina? Isto é uma coisa que não se sabe.   E acho que ninguém nunca tocou neste assunto; e isto é um assunto extremamente delicado, que as pessoas leigas poderão interpretar mal, mas eu quero dizer muito para mim, que quem interpretar mal estes elementos está de má fé.

 

MVFG – Como professor dos cursos de Pós-Graduação, na PUC-SP, no ano de 1997, na disciplina específica “Ciberpoéticas da Transformação”, experiência que a sabemos das mais produtivas, uma vez partícipes do curso, fale-nos um pouco do que foi  – e do que mais poderia ter sido (opcional) – esta experiência, exclusivamente sob a visada orientador/aluno.

 

EMMC – Do primeiro curso, tenho menos a falar, porque houve determinados aspectos principalmente da animação e da transformação que não houve possibilidade de tratar neste curso; no primeiro, tratamos de imagem estática; no segundo tratamos, predominantemente, de fractais, teorias do caos e problemas de transformação, ou seja, de animação.  Gosto muito mais de falar de transformação do que animação, porque animação faz-me sempre lembrar o cinema; animação é um termo de cinema, não é um termo cibernético, ao passo que a transformação  é o início gramatical básico de todo este trabalho cibernético.   Bom, quanto a estes dois cursos que eu tive o privilégio de realizar na PUC de São Paulo, poderia dizer que foram um começo extremamente auspicioso, não só pela correspondência dos alunos que se inscreveram nos cursos e que deles participaram criativamente, e dos quais eu guardo as melhores recordações nestes dois cursos, em colaboração com o professor Fernando Segolin; não há dúvida que foi uma experiência marcante para mim, tanto quanto eventualmente para eles, ou para alguns deles.  Mas pelos trabalhos realizados, eu acho que quase todas as pessoas ficaram um pouco marcadas por estes cursos. Realizamos uma exposição que, quanto a mim, foi uma exposição brilhante, de trabalhos unicamente feitos pelos alunos durante o primeiro curso, e no segundo foram produzidos alguns trabalhos transformativos muitíssimo interessantes e muitíssimo inovadores com que fiquei extremamente contente, pensando que realmente este meu estado talvez um pouco eufórico, pelos resultados obtidos, como já disse, e pela própria interatividade estabelecida entre os alunos e eu, pensei que poderia ter continuidade, quando abruptamente estes cursos foram interrompidos e foram interrompidos com ações extremamente medíocres e insidiosas, pouco claras, que eu devo dizer que nunca cheguei a perceber, nos seus aspectos imediatos, mas que entendo perfeitamente os seus aspectos profundos de irrupção reativa da mediocridade que jaz no fundo do espírito de muita gente que se julga brilhante e inteligente.  E, portanto, os nossos cursos constituíam uma ameaça a essa mediocridade jazente que, por vezes, invade o meio acadêmico.   Eu lhes devo dizer que já não é a primeira vez que isto me acontece.  Quando eu criei a videopoesia na Universidade Aberta de Lisboa, tive de suspender o programa, porque justamente cheguei à conclusão que tinha ido longe demais e que meu pequeno programa de videopoesia estava incomodando gente demais.   Então, antes de me mandarem embora, eu saí.  Portanto, a mediocridade é tanto lá, como cá; acho que é inerente a determinados aspectos burocráticos e, digamos, de representação, às vezes até, enfim, não direi profissional, mas pelo menos social; e acho que não vale a pena falar mais sobre isto, visto que a mediocridade é um processo de desinvenção e com esses processos de desinvenção eu não quero nada.  Portanto, não há mais cursos deste tipo (é uma pena!);  em outros lugares, como, por exemplo, na Universidade de Belo Horizonte (MG), estou a fazer minicursos deste tipo com os melhores resultados e também já os fiz em Sorocaba (SP).

 

JLA – “Máquina”, poema de 1950, parece ser um marco da sua relação com a tecnologia. A sua atividade como engenheiro têxtil e designer também contribuiu para aliar ciência, tecnologia e poesia?

 EMMC –  Bom , este pequeno poema, se foi um marco ou não, não sei, mas de fato foi a primeira vez que eu equacionei a máquina com a percepção humana.  É aquele poema em que eu digo: “Luzes de mais / ofuscam os meus olhos. / Luzes de menos / fazem-me doente. / Dêem-me um dispositivo automático / para regular o sol / ao nascer, no zênite e no poente.” Portanto,  eu delego  numa máquina para alterar as condições da minha percepção.  E devo dizer que a esta altura, escrever este poema foi uma coisa extremamente invulgar, digamos assim, tanto que  as pessoas riam imenso com esse poema, riam e eu sempre tomei-o muito a sério;  talvez por isso ele possa ser considerado um encontro em que eu, pela primeira vez, talvez de uma forma intuitiva e não plenamente consciente equacionei a máquina com a percepção humana.  Então, concordo consigo e como vê, é um pequeno poema que até sei de cor, é das poucas coisas que escrevi que sei de cor, porque é muito pequeno (risos) e, também, porque eu guardo a minha memória para outras coisas.   Ora, acontece que o aspecto têxtil é uma coisa importante, porque o têxtil não é inocente.  Eu fui conduzido para a engenharia têxtil por razões imediatas, pela necessidade de tirar um curso, pela necessidade de ter uma profissão; eu tinha passado por três anos de boêmia em Lisboa, pretendendo estar a freqüentar um curso de medicina para o qual não tinha nenhuma vocação e a única coisa que eu fazia na Faculdade de Medicina era ler poemas, nos intervalos das aulas, para os meus colegas; eu não ia às aulas, ia aos intervalos das aulas; de fato, foi um equívoco essa história da medicina e a essas alturas fui confrontado com a necessidade de ganhar a vida: a minha família tinha uma fábrica têxtil e, portanto, fui para a fábrica têxtil que eu conhecia como aos meus dedos desde criança, onde eu tinha brincado, enfim, o ambiente da fábrica têxtil era-me extremamente familiar e eu rapidamente vi que poderia ser um engenheiro têxtil.  Fui estudar engenharia têxtil e dei-me muitíssimo bem.  Gostei muito do curso, identifiquei-me imediatamente com a matéria, principalmente nos seus aspectos produtivos, isto é a fabricação do próprio fio, a fiação mecânica (na altura em que eu tirei o curso ainda não havia a automação, mas havia a mecanização, ou seja, já não se fiava à mão, pelo menos nas fábricas havia as fiações mecânicas e começava a haver mecanismos primários de automação de algumas funções, mas também não estava realmente uma automação plena. E, portanto, as operações eram mais lentas, as operações eram mais rituais, digamos assim, e fascinava-me ver como o fio se enrolava nas bobinas e o aspecto serial era uma coisa estética que me fascinava o olhar para aquela repetição das bobinas rodando... o movimento... e talvez tivesse sido ali que eu apreendi a voluptuosidade do movimento. E a tecelagem – à qual me dediquei, porque sou engenheiro têxtil de produção de tecido, não de fiação,  –  na tecelagem, a coisa ia muito mais longe, porque a máquina de tecer é uma máquina milenar, e o processo é o mesmo nos teares mais automáticos, mais avançados, e mais rápidos e mais eficientes e mais perfeitos: tecem com a mesma técnica milenar de levantar uns fios, baixar outros e passar no meio um fio e depois trocar os que sobem descem, os que descem sobem etc, e metem outro fio. E este processo todo de tecelagem era um processo que me fascinava e me fascina ainda hoje, e ainda sei tecer em tear manual com grande eficiência e grande voluptuosidade até, porque olhando para o local, onde o tecido e se forma, e o fio da teia se cruza com o fio da trama e deixam de ser fio para passar a ser tecido, ali há um movimento absolutamente genésico; é um nascimento, é qualquer coisa que nasce; é uma metáfora do nascimento; por outro lado a abertura da diferença entre os fios que sobem e os fios que descem que em terminologia portuguesa se chama cala, esta cala é uma vagina! Dali é que nasce o tecido. Ora, todo o trabalho da tecelagem é um trabalho ligado à produção de qualquer coisa, ao nascimento de qualquer coisa diferente; os tecidos evidentemente destinam-se a ser usados, destinam-se a ser tão efêmeros e gastam-se, destinam-se a embelezar, destinam-se a cumprir funções pragmáticas, a cumprir funções de representação social, ou funções puramente técnicas; e essas funções, a função social representativa, a função pragmática da proteção e a função estética do embelezamento formam um triângulo semiótico no qual se representa toda a vida humana; a moda não é uma coisa supérflua; só é efêmera porque passa, mas o fenômeno da moda não passa e é realmente um dos aspectos triangulares desse significado do uso do têxtil ;  por outro lado, o têxtil tem um aspecto, como já disse, criativo e genésico que se faz extremamente sexualizado, porque a fiação faz-se em fusos que rodam e esses fusos são falos... e a tecelagem é extremamente feminina; por isto na antigüidade a tecelagem era feita por mulheres; a tecelagem só passou a ser feita por homens quando os teares tornaram as máquinas muito pesadas e uma mulher já não tinha capacidade física para lutar com os teares, com essa máquina pesadíssima; quando os teares voltam a ser automatizados, quando os teares voltam a ser máquinas extremamente sofisticadas, voltam as mulheres à tecelagem, como supervisoras; e todo o trabalho de tecelagem é um trabalho ligado à mulher. Como é que isto tudo se articula com a parte da poesia?  Pois acho que já deixei aqui alguns elementos interessantes para podermos considerar que, como diz a Sadie Plant, no livro “Mulher Digital”, os próprios têxteis são de uma maneira bem literal os softwares fundamentais de toda a tecnologia.   É preciso vermos que a primeira revolução industrial é na indústria têxtil que ela se manifesta. E as transformações sociais realmente básicas são feitas através do software têxtil. A primeira máquina cibernética comandada no sistema digital é o tear Jacquard, inventado pelo francês Jacquard que usa pela primeira vez cartões perfurados que depois vieram a ser usados nos primeiros computadores.  E o cartão perfurado, o que quer dizer?   Se tem perfuração é que os fios da teia que correspondem a essa perfuração sobem, os que não têm perfuração baixam, portanto a divisão entre os que sobem e os que baixam é comandada por cartões perfurados. Antigamente, esses fios que subiam e desciam eram comandados um a um por crianças, empoleiradas no alto do tear, que puxavam os fios com umas argolinhas e essas crianças foram substituídas por cartões perfurados, a primeira máquina digital do mundo, não é?   Evidentemente, essas crianças se revoltaram contra a fábrica do Sr. Jacquard, porque perderam o emprego; o Jacquard fugiu para a Inglaterra e a Inglaterra prosperou e, de fato, a máquina Jacquard transformou-se  numa máquina realmente inovadora que vem ao encontro da máquina de  Babage  que é máquina de calcular, vem ao encontro das máquinas de relojoaria, que vem ao encontro de todos os sistemas de automedição que começaram, nessa altura, com mecanização e com comandos pré-cibernéticos, digamos assim, e que são características do século XIX, digamos da pós-revolução industrial.   Portanto, os têxteis representaram para mim uma iniciação.  Eu acho que no meu trabalho como engenheiro têxtil (e devo dizer que fui engenheiro têxtil ativo durante quarenta anos, visto que comecei em 1956 (de vida prática como engenheiro têxtil) e terminei em 1996), fiz de tudo: passei por todas as escalas profissionais da indústria têxtil e obviamente acabei na pedagogia têxtil; escrevi vários livros, porque sou um produtor de livros, estou ligado realmente de uma forma muito orgânica e, portanto, escrevi livros de tecnologia têxtil, de design têxtil, etc.,  a par dos meus livros de poesia.  E se nunca fiz diferença entre o meu trabalho com verso, prosa ou poema visual ou poema cibernético, também nunca fiz diferença entre o meu trabalho têxtil e o meu trabalho poético; sempre os considerei como dois trabalhos; muitas pessoas diziam “mas como é que consegue conciliar tudo?” Eu digo: “Não sei!” Mas conseguia. Hoje eu sei que a chave é eu não considerar este trabalho como antagônico, mas sim como complementar.  Por outro lado, o trabalho com a poesia visual é o que mais se aproxima do trabalho com o desenho têxtil, nos princípios, nos métodos, nos materiais   – hoje todo desenho têxtil é feito em computador, já não se faz desenho têxtil à mão, em parte nenhuma.   Portanto, eu fui pioneiro do desenho têxtil feito em computador em Portugal, tal como fui da infopoesia !  Acho que esta complementaridade é digamos substancial, orgânica, profunda e a quem, por vezes, me dizia “és um mau poeta porque és engenheiro” ou “és um mau engenheiro porque és poeta”, para esses sempre tive e terei uma única resposta: uma enorme gargalhada.

 

JLA – O conceito de infopoesia, na sua obra, passa por dois momentos; a relação da poesia com o computador se faz diferente em ambos. Eu citaria duas obras: “Álea e Vazio (1971) e “The Cryptic Eye” (1995), inserto no Finitos Mais Finitos. Fale-nos um pouco sobre esses dois momentos.

EMMC – Bom, “Álea e Vazio” é uma coletânea de poemas ou de textos que tratam com signo verbal, exclusivamente com signo verbal, embora essa escritura do signo verbal feita à mão, com processos absolutamente convencionais, ou seja, papel e caneta ou lápis ( nunca usei para criar poesia a máquina de escrever. Devo dizer que a máquina de escrever sempre foi para mim um objeto muito repulsivo, porque fazia muito barulho e era muito complicada e lenta.  e Nunca consegui ser um bom datilógrafo e no computador consigo ser um digitador razoável. Isto é extremamente interessante; incomodava-me a mecânica pesada da máquina de escrever; a máquina de escrever começou a interessar-me quando começaram a aparecer as primeiras máquinas elétricas que eram a pré- figuração de um computador . Mas nem isso eu usei para a escrita dos poemas de “Álea e Vazio”. Os poemas de “Álea e Vazio” foram todos escritos à mão, com tinta, sobre o papel, portanto átomos pesados . E quanto à própria poesia que eu escrevi, pois de fato existem poemas computacionais em “Álea e Vazio”, mas uma computação principalmente de combinação e de permutação feita manualmente. Um dos poemas do “Álea e Vazio”, Tudo Pode Ser Dito Num Poema, foi usado pelo investigador português Pedro Barbosa: trabalhando na Universidade do Porto, com engenheiros de computação gráfica, pegou no algoritmo semântico que eu tinha criado nesse poema, modificou-o ligeiramente, introduziu-o no computador e produziu, rapidamente, uma série interminável de permutações (diz-me ele que produziu cerca de três mil) usando o algoritmo, a partir de um magazine de palavras-chaves que ele escolheu ( ele não escolhia a palavra, ele via apenas a categoria gramatical e sintática dos termos a envolver); ele usou um repertório metafísico e logicamente obteve aforismos metafísicos (sobre Deus, o homem, etc.) .  Mas isso foi um trabalho decorrente deste meu poema publicado no “Álea e Vazio”.   Não fui eu que fiz isso, foi o Pedro Barbosa com os técnicos da Universidade do Porto que fizeram este trabalho, entre muitos outros trabalhos, porque o Pedro Barbosa é um homem que trabalha na produção permutacional e combinatória de textos, no computador.

Em relação ao “Cryptic Eye” há todo um abismo. O “Cryptic Eye” já é um produto tipicamente de infopoesia, mas uma infopoesia que, ao mesmo tempo, se subverte, porque tem os aspectos virtuais do poema visual, tem os aspectos verbais e os aspectos verbais são bilingües;  eu faço, portanto, uma proposta de aproximação fonética entre duas palavras uma inglesa e outra portuguesa; essas aproximações são em si próprias bastante problemáticas, podem ser consideradas, nuns casos, mais pertinentes e, noutros casos, completamente impertinentes, mas seja o que for eu faço essa apropriação e procuro visualmente reproduzir essa aproximação;  portanto é uma mistura de códigos; é um poema visual, digamos misto ; ele trata signos verbais dentro de aspectos puramente verbais, ou seja, uma consonância fonética; depois vou tratar estas duas palavras graficamente, mas ao tratar graficamente também não sigo as regras do poema concreto, sigo outras regras que o próprio computador me possibilitou, portanto estou a usar uma outra gramática completamente diferente: vou tratar o signo verbal com meios não verbais.  Há uma imagem que surge como síntese daquilo tudo.  É um poema extremamente complexo; devo dizer que tenho um afeto muito especial por ele e que, a não ser o Jorge, nunca ninguém ligou muita importância a ele;  talvez ele tenha um enunciado muito complexo para os resultados que se obtiveram e aqui eu faço uma pequena observação: é que o que está envolvido nesta pesquisa não é propriamente a obtenção de resultados antológicos, de resultados ideais, de resultados, como diria, excelentes; o que está envolvido aí é o processo: tudo isto são poéticas do processo e isto é que é realmente o importante e este caso do “Cryptic Eye”, por alguma razão, ele se chama “Olho Críptico”; o que é o olho críptico?   É o olho cifrado, um olho que não está desvendado, uma visão que está para além da própria visão e que é difícil de desvendar. Aquilo é um trabalho de criptografia estética. Portanto, são dois momentos muito distintos um do outro, o Álea e Vazio e o Cryptic Eye . Mas também, devo dizer, se eu não tivesse feito o trabalho do Álea e Vazio possivelmente nunca teria feito o outro, porque essas coisas andam todas ligadas, porque tudo é a poética do processo.

JLA – Em Álea e Vazio, “Tudo pode ser dito num poema” é a única sua poesia permutacional?  Se não soubermos que a poesia permutacional foi feita através de um programa gerador de textos (esta idéia está errada), na maioria das vezes torna-se difícil identificar a relação desse texto com o computador.  Pode nos falar um pouco sobre o assunto?

EMMC – Pois devo dizer que tenho mais poemas permutacionais e venho fazendo poesia permutacional desde 1962 ou 63;  há poemas permutacionais meus na Poligonia do Soneto (1963);  há poemas permutacionais meus em  Versos-in-versos (1968) e há no Álea e Vazio que é já de 1971.  E ainda hoje pratico poesia permutacional à mão, simplesmente hoje pratico de uma forma mais sutil, uma forma menos evidente; mas há muitos poemas seriais, que são uma forma de seriação, uma forma combinatória; há a combinatória simples, seguindo-se as regras das combinações e há as permutações, seguindo as regras rigorosas matemáticas da permutação e eu chamo tudo isso de sintaxe combinatória; essa sintaxe combinatória é uma das bases de grande parte da minha poesia, até hoje. E, por exemplo, há um texto em que proponho um outro algoritmo que é muito semelhante ao “Tudo pode ser dito num poema”  e que se chama  “O Amor do Texto” e que é já de 1990, em que eu exponho umas proposições básicas, depois faço comentários às proposições, depois proponho o algoritmo para utilização dessas proposições e depois produzo um texto poético usando as proposições básicas em conjunto com esse algoritmo . É um pouco mais complexo do que “ Tudo pode ser dito num poema”, mas é praticamente a mesma base .  Mas se você quer textos permutacionais ainda mais recentes meus, você tem um dos textos inéditos nesta antologia recentíssima  Antologia Efémera;  texto inédito que se chama “ Substituições/ Revelações” em que eu começo por dizer que substituo isto por aquilo e aquilo por aquilo e acontece isto, substituo outra coisa por esta, aquela por outra e acontece outra coisa e vou entrando numa substituição absolutamente caótica e turbulenta até que chego numa conclusão inesperada. É uma outra forma de poética permutacional mais complexa, mas realizada na escrita manual.

JLA – É uma utilização de processos semelhantes a um programa de computação!

EMMC – Justamente. Respondo agora à outra pergunta contida nesta. (Jorge repete a questão).

Isto é muito difícil. Não há dúvida que uma pessoa que seja confrontada com, por exemplo, os aforismos de caráter metafísico produzidos pelo Pedro Barbosa, ou a partir do meu algoritmo de “Tudo pode ser dito num poema”,  e que não souber da existência desse algoritmo, que não souber da existência do processo e for confrontada apenas com o texto,  pode considerar que este texto foi escrito à mão. (É exatamente o contrário daquilo que ocorre no poema “ Crytpic Eye”).  É que embora seja um poema em que o processo é importante , não se trata de uma poética do processo; o resultado pode ser obtido por outros meios; simplesmente à mão, eu nunca seria capaz de fazer três mil, ou talvez fosse se eu dedicasse o resto da minha vida inteiramente (e o resto da minha vida talvez não chegasse) para produzir o que o Pedro Barbosa produziu ( três mil aforismos) e ele o fez já num computador muito antigo o que lhe deu muito trabalho.  Mas isto é o processo e você tem toda razão em dizer que quem não conhecer o processo e for confrontado com o texto pode admitir que o poeta realizou 33 aforismos apenas como podia ter realizado 40, 50  ou 10. Quem for confrontado apenas com o texto não percebe que aquilo foi feito por números.  Portanto, há poéticas em que o processo é extremamente importante, como no “Cryptic Eye” e há outras, como na arte permutacional, em que o processo só é importante quantitativamente em termos de que em poucas horas pode-se produzir um trabalho que um homem levaria uma vida inteira a fazer, mas se este homem consagrar a vida inteira a fazer isto consegue fazê-lo.

JLA – De uma forma geral, do editor de textos para o editor de imagens houve um avanço na poesia digital?

EMMC – Bom, editor de textos versus editor de imagens...   Eu acho que o editor de imagens, sob o ponto de vista conceptual, se equipara ao de texto (eles têm as funções iguais, são a mesma coisa, assentam-se nos mesmos princípios), mas no que diz respeito aos resultados o editor de imagens produz resultados muito mais complexos, muito mais avançados do que o editor de textos. Até porque o texto é uma coisa muito limitada, o texto tem de ter características de legibilidade, de compreensibilidade, digamos obedece a regras de gramática, sintáticas, semânticas e o texto, portanto, não pode ser muito alterado; se alterarmos muito o texto então entramos já numa produção que  ultrapassa a noção de texto convencional, para ir para um metatexto, um texto do texto, que pode ter interesse sob o ponto de vista poético e, quanto a mim, acho que tem muitíssimo interesse. Tem muitíssimo interesse passar do texto semântico, digamos ligados a signos verbais dicionáricos ou imagísticos, para uma noção de metatexto que funciona visualmente. Eu trabalho muito com este princípio no livro Algorritmos, em que eu parto de um texto que ainda é compreensível, para gradualmente passar a um texto que perdeu o seu significado como texto verbal, para passar a ser um texto totalmente visual, ganhar uma outra visibilidade, ganhar uma outra categoria. Isto é extremamente importante, mas isto só se pode fazer com o processador de imagens, no próprio processador de textos é muito difícil. A não ser por superposição; a superposição de textos foi uma coisa que me fascinou de uma maneira enorme e tem graça como alguns poetas como Arnaldo Antunes, por exemplo, trabalharam a superposição, mas a abandonaram rapidamente; possivelmente não gostou (Arnaldo Antunes), ou as pessoas à volta dele não gostaram da perda do sentido, do significado e não perceberam que há outro sentido que nasce; o sentido verbal ganha o sentido visual, o sentido plástico, e isto é extremamente interessante, a superposição de textos dá isto, não é?   Aliás, já se podia fazer superposição de textos mesmo sem computador e eu mesmo fiz isso há muitos anos; ainda não havia computador, ainda não se pensava nisso: com transparências em acetato, superpunha textos  resultando o que nesta altura se chamava padrões de interferência e entrávamos no gestaltismo, entrávamos nas figuras de Gestalt, etc. e estávamos em plena arte gráfica, inventiva.  Mas,  no computador isto se faz com muito mais facilidade e portanto, resumindo, eu acho que, como você diz, o processamento visual pode ir mais longe do que o processador de texto.

JLA – Enquanto [   ] [   } jactos [  ] e hiatos (1994) é uma obra interessante e inovadora. Gostaríamos que você falasse de suas experiências poéticas que resultaram nesse livro.

EMMC – Este livro Enquanto [   ] [   } jactos [  ] e hiatos é uma exploração do chamado poema esquemático.  A noção de esquema gráfico é uma noção que não foi muito usada; um poeta que usou esta noção foi o Cummings e fica quase por aí; e não há dúvida que o computador nos ajuda a fazer poemas esquemáticos com relativa facilidade; no entanto o Enquanto [   ] [   } jactos [  ] e hiatos foi todo feito à mão. Depois foi passado para o computador por uma assistente minha do IADE ( Instituto de Arte e Design), em Lisboa, onde eu trabalhava; mas os poemas não foram criados no computador e, sim, à mão com meios escriturais. E, portanto, o que está em jogo ali é o uso de recursos ideográficos, ou seja os sinais de pontuação e, quanto a isto, é um código ideográfico que se mistura com o código alfabético para lhe dar intencionalidade, ritmo e nalguns casos  intensificar propriamente os aspectos semânticos do texto, mas também os aspectos prosódicos, não é?  Portanto, eu usei a pontuação descontextualizada e por outro lado propus uma semântica lacunar.  Eu acho que o que eu produzi neste livro é uma experiência que tem alguns antecedentes no pós- simbolismo português, como por exemplo, o uso excessivo de pontuação feito pelo poeta Ângelo de Lima e o uso excessivo de maiúsculas também . O Ângelo de Lima é um poeta da época do Orfeu que esteve internado durante 30 anos  e tido como louco num hospício.

Este meu livro manifesta muito este pensamento lacunar, este pensamento onde o que falta é mais importante do que o que lá está e, por outro lado, uma enorme expressividade latente; o próprio Ângelo de Lima dizia quando lhe perguntavam por que usava tantos sinais de pontuação e tantas maiúsculas ele respondia lapidarmente “porque saltam do bico da pena, com seu mais alto valor expressional”. E, portanto, o que é que eu fiz?  Foi seguir o exemplo do Ângelo de Lima, exagerá-lo e criar uma poética lacunar, essencialmente lacunar.  Foi um caminho que eu praticamente não segui, mas não quer dizer que não volte a seguir.

JLA – Que lhe pareceu a sua experiência ao colocar as suas infopoesias e ensaios na internet?

EMMC – Não posso dizer absolutamente nada sobre isto, porque não tive retorno absolutamente nenhum. Não sei se os poemas foram ou não lidos, se foram ou não vistos. Mas, esta tentativa de colocar textos na internet é uma tentativa hoje corriqueira; hoje nós temos um repertório tão grande de textos na internet, sobre todos os assuntos, que corremos o risco de a internet se transformar numa espécie de um caixote de lixo, porque não há nenhuma espécie de critério e quando se faz uma pesquisa sobre determinado assunto é como uma pesca: pode vir peixe bom, peixe miúdo ou podre. O “pescador” tem de selecionar a pesca. Isto vai depender de cada um de nós, pesquisadores. Não se pode exigir que a internet entre nestes aspectos críticos, porque então isto implica uma censura. Como sou libertário acho que assim está muito bem. Portanto eu coloquei os textos na internet, vou colocar um livro inteiro de textos na internet, totalmente de graça; são textos que já foram publicados (textos críticos, comunicações em congressos, simpósios, convênios e outros do gênero) que já cumpriram a sua função e agora ao invés de serem publicados num livro, vou organizá-los como um todo, colocá-los na internet à disposição de quem quiser utilizá-los. Se não tiver retorno algum, nada posso fazer. Além disso, uma coisa que me parece ridícula e que a internet vem a pôr muito em evidência é esta noção extremamente importante durante o século XIX e durante todo o século XX que é a noção de direitos autorais. Evidentemente, um homem como José Saramago ou os grandes escritores de best-sellers defenderão com todas as espadas quixotescas os direitos do autor; mas eu como sempre tive o privilégio de nunca viver da literatura, sem entretanto ser um diletante, porque devo dizer que  minha verdadeira profissão é a literatura, é a produção de textos. Importante, também  foi durante muitos anos, a parte têxtil com a qual eu ganhava dinheiro. Hoje evidentemente sendo professor universitário é a parte pedagógica, didática que garante a minha subsistência Assim eu não preciso dos direitos de autor, portanto posso me dar ao luxo de abdicar daquilo que nunca tive. Portanto vou publicar tais textos na internet, nos próximos quatro a cinco meses e vou propor às pessoas que não gostam de ler na tela do computador que imprimam os textos e componham seus próprios livros, inclusive podem alterar a ordem dos textos e se quiserem até os textos (um dos aspectos perversos da interatividade) ( risos)

JLA – Na verdade, conforme o programa não dá para alterar os textos.

EMMC – É isto mesmo, bom, porque evitamos este aspecto perverso da interatividade.

JLA – “The Cryptic Eye”, “Transpoética 3D” e “Algorritmos” se mostram mais do que apenas usos de diferentes tipos de softwares. Que aspectos eles representam na busca de uma poesia que se faz por meio do computador?

EMMC – Eu acho que esta pergunta já foi respondida quando eu falei lá em cima na diferença entre o “ Cryptic Eye” e o livro “Alea e Vazio” e, depois, com a referência ao “Algorritmos”. Agora, só há uma coisa que talvez se possa juntar, que é o seguinte: eu não usei diferentes tipos de softwares. Tanto com o “Cryptic Eye”, como com a “Transpoética 3D” e no livro “Algorritmos”, eu usei sempre o meu software de eleição que é o Photoshop.  De fato, o que há são diferentes usos do Photoshop.  E na “Transpoética 3D” e nos “Algorritmos” há o uso do Fractint, para produzir os fractais. Mas, de fato, o que eu usei nestes três poemas e num outro poema que você não conhece e que se chama “Errância do erro” (publicado numa revista espanhola), poema conceptual/visual, foi também o mesmo Photoshop. Para os poemas tridimensionais usei obviamente um programa de 3D.

JLA – Que tipo de poesia poderia ser feita na internet, do seu ponto de vista? Que diferença pode existir neste tipo de mídia digital?

EMMC – Bem, eu não sei. Eu acho que o que existe até agora na internet, como criação poética, ligada à internet, à especificidade do meio é pouco mais que nada. Eu francamente não conheço, portanto eu não estou qualificado para responder a essa pergunta na medida que não sou um utilizador freqüente da internet e o que existe de poesia em internet é apenas a comunicação de textos feitos fora da internet para serem comunicados e usados através da internet;  portanto, a internet até agora tem sido sempre muito mais um meio de comunicação e de armazenamento de informação  e de consulta do que propriamente de produção e principalmente produção de arte, acho que não produz absolutamente nada, ou até agora muito pouco.  Evidentemente haverá tentativas e vai haver com certeza porque todos os meios têm a sua especificidade poética. Agora, o que eu me pergunto é se a internet é um meio ou é um suporte. E eu tenho para mim que é um suporte e os suportes não produzem especificidades poéticas. Podemos pôr o mesmo poema em videotape, em DVD, em CD ROM e é o mesmo texto. O que produz especificidade poética são propriamente os midia, são propriamente os meios; portanto, eu tenho para mim que a internet tem sido até agora um suporte. Quando entrarmos na tal web semântica, na rede semântica (algo que mais anos menos anos já estará aí), então talvez já poderá haver uma criatividade específica, porque a rede semântica o que faz?  Estabelece links significativos de modo a que a máquina simule o sentido, mas neste momento estamos no campo da especulação e no campo da ficção científica ou ficção poética se quisermos.

JLA – Podemos estabelecer uma comparação entre a arte postal e a arte internética, assim como podemos estabelecer relações entre a poesia visual e a poesia computacional? A arte internética e a arte postal seriam continuações da necessidade de comunicação artística através dos tempos?

EMMC – Não há dúvida que são realmente formas de comunicação, não é?

( Intervenção de Jorge : - Acho que  falta aqui um complemento: esta comparação arte internética com arte postal vai estar ligada aos trabalhos coletivos que se fazem na internet. Por exemplo, recentemente eu fiz um trabalho com uma moça das Filipinas e vamos apresentar este trabalho sobre energia na Alemanha; nesse sentido é que... )

EMMC – (emendando a fala de Jorge) Pois, evidentemente, mas é usando a faculdade da comunicação superlativa e, de certo modo, reconstituindo uma interatividade que se torna possível entre pessoas que não estão próximas, porque um dos aspectos da interatividade é a necessidade de proximidade; agora, a internet produz a interatividade à distância, não é? E isto que vocês resolveram fazer é extremamente interessante: produzir um texto, ou poema, ou seja o que for, ou uma imagem, ou um poema visual com uma pessoa da qual se está a uma distância enorme; a internet como meio de comunicação privilegiado aproxima-os e depois vão apresentar isto não só na Alemanha como em todo o mundo. Poderá ser acessado em toda parte, na Groenlândia ou no Pólo Sul se houver lá alguém com computador com internet o que deve haver, evidentemente.  De forma que este é um dos aspectos extremamente interessantes da internet. Agora, o que eu pergunto e o que você pergunta também é: será isto uma especificidade criativa?  O texto que vocês criaram poderia ter sido criado fora da internet, se vocês estivessem próximos um do outro? Aí é que está o problema. E há os que dizem que sim e os que dizem que não. E eu não tomo partido. Mas digo que é uma possibilidade extremamente interessante indiscutivelmente e é nova. E isto já é uma diferença em relação à arte postal. Porque a arte postal dos anos 60, 70, mais dos anos 70 do que dos 60, não era mais que o envio de pequenos poemas visuais, ou pequenos textos, ou pequenos objetos, através do Correio, servindo-nos nós de um aspecto confidencial que o Correio tem. Os correios têm essa história de transportação de mensagem, de transportes de mensagens; são suportes que têm uma regra: a inviolabilidade da mensagem. Quando os correios quebram essa regra estão a exercer um poder que não têm e isto só acontece em regimes políticos totalitários. O correio democrático é inviolável. Então, para o que é que se aproveitou?  Para mandar mensagens de certo modo corrosivas e de certo modo contestatórias, em relação a situações políticas específicas.  Esta foi a grande razão da arte postal que depois acabou numa brincadeira, de troca de coisas sem grandes significados e morreu. A arte correio expirou enfim, porque de fato não tinha nada, não tinha conteúdo específico; era apenas a utilização de um meio.

(Jorge intervém: Hoje se vê isto na internet, apenas com o pessoal de língua espanhola ...)

(Melo e Castro, retomando) – Pois, mas a razão é apenas a razão da comunicação e isto é importante, porque não há dúvida que a comunicação tem vários aspectos que a tornam significativa: tem o aspecto lúdico, tem o aspecto do diálogo ( e não se pode viver sem diálogo), tem o aspecto da aproximação, enfim de participantes que não se poderiam encontrar em outros meios se não assim, e isto já é uma conquista importante. Agora, uma conquista especificamente da criatividade poética é que é capaz de não ser, ou ser. Eu acho que depende de quem fizer o uso. E pode ser que surjam grandes criações poéticas de qualquer outro tipo, ou mesmo até do tipo convencional produzidas através da internet; não sou limitativo em relação a isto. Agora, o que devo dizer é que até agora ainda não vi, mas se vir fico muito contente.

JLA – “Poética dos Meios e Arte High Tech” (1988) é um livro que veio para ficar e marca um momento de reflexão sobre poesia e tecnologia. Há intenção de reunir os seus outros experimentos e conceitos num novo livro que registre as suas novas reflexões e experiências sobre o assunto?

EMMC – Bom, existe, evidentemente. A “Poética dos Meios e Arte High Tech” foi publicada em 1988 e foi, de certo modo, um livro inusitado, invulgar; em 88, foi um grande atrevimento de minha parte produzir esse livro. E devo dizer que esse livro nasceu de uma viagem que fiz ao México, onde fiz várias conferências e fiz várias intervenções na televisão sobre essas coisas; eu fui mostrar a minha videopoesia, fui a um festival de vídeo experimental e depois acabei por ficar um mês e meio no México fazendo palestras e conferências, porque as pessoas da cidade do México são de uma receptividade realmente extraordinária. Esse livro nasceu justamente de uns apontamentos que fiz para as conferências que dei no México, mas de qualquer maneira, o livro está ultrapassado e desatualizado e, embora contenha algumas idéias básicas, precisa de ser revisto.  Eu estou, neste momento, a rever o livro, a juntar outros textos, a torná-lo mais complexo e mais atual e vai ter o título de “Máquinas de Trovar”, que é um título roubado ao António Machado que tem um heterônimo que criou uma máquina de trovar, ou seja, uma máquina de fazer poemas em 1922; portanto, eu estou preparando este livro e espero que em 2002 saia.  É um livro bastante mais complexo, mas a estrutura é muito semelhante ao da “Poética dos Meios e Arte High Tech”.

 

                                                                                  São Paulo, maio de 2001.


(*) MARIA VIRGILIA FROTA GUARIGLIA, Pesquisadora, poeta, doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC SP. (**) JORGE LUIZ ANTONIOPoeta,  pesquisador, doutorando em Comunicação e Semiótica pela PUC SP.


 

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