versiones,
versiones, versiones y versiones...Director, editor y
operador: Diego Martínez Lora
Laura Moniz(*)
aquela concha junto à orelha e outro poema
aquela concha junto à orelha
acho que não te estou a inventar
não te guio por uma estrada do funchal
cheia de rodeios e metáforas
tantas figuras de estilo e a retórica
com as quais se construíam poemas
noutro século
acho que não te estou a inventar
não escrevo dum ângulo de poema
onde construí uma escada de açúcar
nem duma praia cheia de cães
porque as coisas inventadas
por esse meio
são efémeras
as formigas chegam vindas não se sabe de onde
e desfazem a escada que leva ao castelo
os caçadores de cães abandonados chegam
e retiram os cães do poema construído
arrancam-lhes a carne
e fazem deles cordas
para amarrar outros cães
num poema sem uivos
é época de fome na literatura ocidental
por isso não
acho que não te estou a inventar
continuam a cair cascatas nas serras da ilha
florescem buganvílias
e estas são mesmo minhas
não fui buscá-las à poesia do capitão
neruda que se desenrasque com as suas flores
a minha, é uma ilha florida
cheia de poemas sem palavras
por isso
acho que não te estou a inventar
levo-te por estas estradas
onde abundam hortênsias
onde a cada passo
mudas de estação
ofereço-te
nesta terra
a cerimónia do chá
e em que paraíso
te dariam todas as estações
todas
uma
a
uma
no mesmo dia?
por isso
acho que não te estou a inventar
não preciso de ir pelas praias
à procura de búzios
para construir uma ideia de búzio enorme
e universal
e mostrar-te que mar recriado
se pode tirar da solidão de um búzio
que por ser recriado
não é mais do que um farrapo
daquela ideia de concha
que podes encostar à orelha
por isso não
acho que não te estou a inventar
a imaginar-te construído assim
neste poema
porque neste poema
não florescem ilusões
e posso
posso até falar-te daquelas noites de lua cheia
e dizer-te como são românticas
em absoluto
aquelas noites de lua cheia
e posso dizer-te
tenho cólicas horríveis
ainda que neste país
os proto-intelectuais se escandalizem e digam
credo menina
no funchal ninguém diz sequer escatológico
com medo de parecer malcriado
no funchal ninguém fala de sexo
no funchal ninguém fala dessas coisas
queremos uma literatura limpa
limpa limpa
mas não vou limpar este poema
estando todo ele aqui
nos teus ombros
celebrando a primeira madrugada
estando ele todo aqui
nos teus lábios
pousando nos meus seios
estando ele todo aqui
nas tuas mãos
que me procuram ansiosas
estando todo ele aqui
quando digo
acho que vivi
mas vivi muito pouco
devia ter visto mais
devia ter perguntado a todos
homens e mulheres
que coisa é essa
a humanidade envergonhada
do que tem desde sempre
porque não cientificamente provado
que se possa extirpar
a dor não falando dela
nem o desejo
muito menos o desejo
e muito menos
calar o desejo
assim
não querer inventar
recusar-me a inventar
para não ter de refazer
e desfazer de beatos pudores
o teu beijo
por isso não
acho que não te estou a inventar
onde é que já se viu uma alma gémea
com exigências puritanas
que o teu suor não tem
assim
uma alma gémea com olhar de virgem absoluta
que a tua voz não tem
quando me diz
toda nua
toda nua
assim
não existe em lugar nenhum
onde se ame
um poema feito de excrescências de cacos
a um passo apenas da desilusão
um ardor feito de laçarotes e pó talco
que se remói de puritana indecisão
sim sim
porque a ter de inventar-te desse modo
meu amor
prefiro a solidão
02-04-2002 5:24:06 alt. em 25 abril 2002 – madrugada –
elucidário madeirense
que
sabes tu
do
mar cor de noite escura
que
o fado
por
outras mãos
nos
deu
que
sabes tu
da
força que é preciso inventar
quando
alguém
nos
proibiu o verbo
e
não explicou
que
a semilha
era
só uma pequena semente
quando
alguém nos deu a fome
e
nos tirou a farinha e o pão e o fermento
que
sabes tu
da
sabedoria que a minha avó analfabeta cala
sob
a terra
que
sabes tu
da
ciência da feitura do poio
e
do trambolhão dos meninos
que
jogam à bola na rua do comboio
com
o comboio quase a vir desesperado numa inclinação de quase noventa graus
para
os teus olhos
só
para os teus olhos inexperientes
com
o comboio que arrasta os pulmões
e
a caldeira que levou a Mariquinhas
porque
nesse dia
estava
escrito
alguém
tinha de partir
voando
voando
por
isso que sabes tu
das
asas que é preciso ter das asas
que
é preciso inventar numa ilha
construída
de pedra
das
casas que têm de ser erguidas do basalto
e
que voam com asas de borboleta
sobre
a encosta
que
sabes tu
da
alma de homens e mulheres
que
aplanavam os socalcos
e
os degraus da terra
para
terem uma pequena ideia de planície
que
vai
bor
bo
le
tan
do
encosta
abaixo
ribeira
acima
12-04-2002 20:49
(*)Laura Moniz,, poeta portuguesa. Mora na Madeira.
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