versiones, versiones, versiones  y versiones...renovar la aventura de compartir la vida con textos, imágenes y sonidosDirector, editor y operador: Diego Martínez Lora Número: 51 / agosto - setiembre 2003


Laura Moniz(*)


aquela concha junto à orelha e outro poema


                                           

                                           

aquela concha junto à orelha

 

 

acho que não te estou a inventar

não te guio por uma estrada do funchal

cheia de rodeios e metáforas

tantas figuras de estilo e a retórica

com as quais se construíam poemas

noutro século

 

acho que não te estou a inventar

não escrevo dum ângulo de poema

onde construí uma escada de açúcar

nem duma praia cheia de cães

porque as coisas inventadas

por esse meio

são efémeras

 

as formigas chegam vindas não se sabe de onde

e desfazem a escada que leva ao castelo

 

os caçadores de cães abandonados chegam

e retiram os cães do poema construído

arrancam-lhes a carne

e fazem deles cordas

para amarrar outros cães

num poema sem uivos

 

é época de fome na literatura ocidental

 

por isso não

acho que não te estou a inventar

continuam a cair cascatas nas serras da ilha

florescem buganvílias

e estas são mesmo minhas

não fui buscá-las à poesia do capitão

 

neruda que se desenrasque com as suas flores

 

a minha, é uma ilha florida

cheia de poemas sem palavras

por isso

acho que não te estou a inventar

 

levo-te por estas estradas

onde abundam hortênsias

onde a cada passo

mudas de estação

ofereço-te

nesta terra

a cerimónia do chá

 

e em que paraíso

te dariam todas as estações

todas

uma

a

uma

no mesmo dia?

 

por isso

acho que não te estou a inventar

não preciso de ir pelas praias

à procura de búzios

para construir uma ideia de búzio enorme

e universal

e mostrar-te que mar recriado

se pode tirar da solidão de um búzio

que por ser recriado

não é mais do que um farrapo

daquela ideia de concha

que podes encostar à orelha

 

por isso não

acho que não te estou a inventar

a imaginar-te construído assim

neste poema

porque neste poema

não florescem ilusões

 

e posso

posso até falar-te daquelas noites de lua cheia

e dizer-te como são românticas

em absoluto

aquelas noites de lua cheia

e posso dizer-te

tenho cólicas horríveis

 

ainda que neste país

os proto-intelectuais se escandalizem e digam

credo menina

no funchal ninguém diz sequer escatológico

com medo de parecer malcriado

no funchal ninguém fala de sexo

no funchal ninguém fala dessas coisas

queremos uma literatura limpa

 

limpa limpa

 

mas não vou limpar este poema

estando todo ele aqui

nos teus ombros

celebrando a primeira madrugada

estando ele todo aqui

nos teus lábios

pousando  nos meus seios

estando ele todo aqui

nas tuas mãos

que me procuram ansiosas

estando todo ele aqui

quando digo

acho que vivi

 

mas vivi muito pouco

 

devia ter visto mais

devia ter perguntado a todos

homens e mulheres

que coisa é essa

 

a humanidade envergonhada

do que tem desde sempre

 

porque não cientificamente provado

que se possa extirpar

a dor não falando dela

 

nem o desejo

muito menos o desejo

e muito menos

calar o desejo

 

assim

 

não querer inventar

recusar-me a inventar

para não ter de refazer

e desfazer de beatos pudores

o teu beijo

 

por isso não

acho que não te estou a inventar

onde é que já se viu uma alma gémea

com exigências puritanas

que o teu suor não tem

 

assim

 

uma alma gémea com olhar de virgem absoluta

que a tua voz não tem

quando me diz

toda nua

toda nua

 

assim

 

não existe em lugar nenhum

onde se ame

um poema feito de excrescências de cacos

a um passo apenas da desilusão

um ardor feito de laçarotes e pó talco

que se remói de puritana indecisão

 

sim sim

porque a ter de inventar-te desse modo

meu amor

prefiro a solidão

 

 

 

02-04-2002 5:24:06   alt. em 25 abril 2002 – madrugada –


 

 

 

elucidário madeirense

 

 

que sabes tu

do mar cor de noite escura

que o fado

por outras mãos

nos deu

que sabes tu

da força que é preciso inventar

quando alguém

nos proibiu o verbo

e não explicou

que a semilha

era só uma pequena semente

quando alguém nos deu a fome

e nos tirou a farinha e o pão e o fermento

 

que sabes tu

da sabedoria que a minha avó analfabeta cala

sob a terra

que sabes tu

da ciência da feitura do poio

e do trambolhão dos meninos

que jogam à bola na rua do comboio

com o comboio quase a vir desesperado numa inclinação de quase noventa graus

para os teus olhos

só para os teus olhos inexperientes

com o comboio que arrasta os pulmões

e a caldeira que levou a Mariquinhas

porque nesse dia

estava escrito

alguém tinha de partir

 

 

voando

voando

 

 

por isso que sabes tu

 

das asas que é preciso ter das asas

que é preciso inventar numa ilha

construída de pedra

das casas que têm de ser erguidas do basalto

e que voam com asas de borboleta

sobre a encosta

 

que sabes tu

da alma de homens e mulheres

que aplanavam os socalcos

e os degraus da terra

para terem uma pequena  ideia de planície

que vai

bor

bo

le

tan

do

encosta abaixo

ribeira acima

 

 

12-04-2002 20:49


(*)Laura Moniz,, poeta portuguesa. Mora na Madeira.


 

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