versiones, versiones y versiones...Director: Diego Martínez Lora
José António Gonçalves(*):
A noite nos lábios e outros poemas
A NOITE NOS LÁBIOS
sou assim, meu amor. só. rente à distância
das multidões. trago na medula do poema o cheiro
da minha manhã. a manhã de todos os dias. por isso
repartimo-la. sem palavras. culposamente.
no sussurro do arrepio da ternura das mãos
sobre o corpo. bebendo o eco do silêncio por dentro
ao ritmo do bater do coração. depois é a casa. o repetir
das coisas. o ressuscitar dos dedos na penumbra
eternizando-se nas horas.
sou assim. meu amor. no devorar dos movimentos
e das esperas. habitante de uma prisão vazia. prisioneiro
enraizado nas tardes que não possuo. se quiseres
recebe-me. comungaremos de novo a manhã no poema
e a noite infinita
nos lábios.
(inédito, 1973)
e digo:
não suspiro nem respiro. espero
o pressentimento do teu corpo a chegar
sem alento. recebo a tua voz aglutinada,
restaurada por um vento ilhéu, isolando
o som da dor deste soluço a se afundar na
água azul, ensopando a madeira das montanhas,
e misturo-me nos teus cabelos longos
abraçado às palavras baixas, desencontradas,
a nascer nos teus lábios suados. toco-te
e mexes-te. aconchegas-te amareladamente
entre o espaço da corola dos meus dedos
e desfazes-te nos raios de sol da tua cor
agonizante. deixo-me sem sangue, morto,
derrubado e enterrado no teu leito
de ervas vivas e macias. vejo-te
surgir devagar, através das horas,
mutilando o calendário, enlouquecendo os dias
e, amolecido de contentamento, nem sinto
entrares nos meus olhos, nas minhas mãos,
sem a força de um rosto firme
nem o ímpeto da fera em cima
da presa
e digo:
maio manhã flores cordões e há quem morra
e há quem ame e renuncie
e na ilha aparecem mais homens desarmados
na luz calma, no espelho incandescente
da vida
e ressuscito lentamente no mês em início
sem o rubor da minha face flamejante
nem o aquecimento dos meus poros
porque dum útero podre e velho
dos anos
criou-se o tempo de reviver.
(inédito, 1973)
SICÍLIA À PRIMEIRA VISTA
1
À chegada, escarpas
firmes no sonho do espanto.
Um calor que canta
na carne bem junto dos ossos.
No ar cheira a mistério:
há uma simbiose de verde cobrindo
o amarelo solar ao rasar o chão de flores,
misturando a terra
com o casario distraído de brancos
e cinzentos seculares.
No céu, se há nuvens,
elas afastam-se, sempre devagar,
no aconchego inesperado
das muralhas de pedra.
2
Observam as falésias
o mar que descansa junto aos barcos,
abraçando todos os cais
espalhados como dedos,
como folhas de árvores,
pelo corpo sinuoso da ilha.
Ali não se teme
as consequências nefastas
dos outonos trazidos por corsários
no rubor das paixões
derramadas sobre os vales.
É sempre o amor clandestino
quem está ao leme.
3
O olhar mora em Palermo.
As outras cidades confundem-se
com aldeias e os asfaltos com muros,
desdobrando-se em alpendres.
As aves, os abismos, os rochedos
e os caminhos parecem esculpidos
nos rostos de quem passa
desconhecendo o seu destino.
E entardece,
enquanto alguém pensa
no sal das montanhas
inexpugnáveis,
escutando o canto dos pássaros
e as sombras das carroças
simulam vida,
gemendo ao longe.
4
Abre-se a porta, uma janela,
puxa-se uma cadeira,
contempla-se o horizonte
e adormece-se numa cama
de hotel com olor
a alfazema, a vida.
Aspira-se a consciência
e escreve-se com suor
a palavra pecado
numa rua sem saída.
5
Somos atlantes. Seres
permanentemente em busca.
Perdemo-nos na escuridão dos largos,
assustamo-nos com a imponência
das mansões e afogamo-nos
no copo de um bar qualquer
imbuídos do espírito azul do faz-de-conta
como se acordar fosse a sina de partir.
O sono não é eterno. Como uma mulher
chorando, cansada de voar sobre as águas.
Ou de amar. De esconder mágoas. Ou de rir.
(inédito)
ELLA FITZGERALD:
MARFIM BRANCO E NEGRO
Visitas-me num desses dias de primavera
na bruma do desanuvear as pétalas
das flores em redor
e de repente acontece o amor.
Visitas-me devagar
como quem tem tempo
para adormecer no silêncio de todas as tardes
e nesse enlevo escuto a tua voz
e noto como ardes.
Nesses momentos
(é preciso confessar para a eternidade)
esqueço o hábito da escrita
as coisas comuns e banais da história
a tradição de habitar o vulgar e frágil quotidiano
e aí tudo volta a repetir-se
com a magia dos grandes acontecimentos.
Então reparo como voas
junto de um coro de anjos
acompanhada por uma orquestra celestial
sob a batuta de Duke Ellington
e como te pareces musicalmente
com o som quente e vibrante de um piano
quando levas solitude
até ao espaço sideral.
Pensando nisso decido descansar
calmamente
no marfim branco e negro
desse engano.
(inédito, Dezembro, 2002)
(*)José António Gonçalves, poeta madeirense.