versiones, versiones y versiones...renovar la aventura de compartir la vida con textos, imágenes y sonidosDirector: Diego Martínez Lora    Número 52 - octubre-noviembre 2003


José António Gonçalves(*):

A noite nos lábios e outros poemas


 

A NOITE NOS LÁBIOS

 

sou assim, meu amor. só. rente à distância

das multidões. trago na medula do poema o cheiro

da minha manhã. a manhã de todos os dias. por isso

repartimo-la. sem palavras. culposamente.

no sussurro do arrepio da ternura das mãos

sobre o corpo. bebendo o eco do silêncio por dentro

ao ritmo do bater do coração. depois é a casa. o repetir

das coisas. o ressuscitar dos dedos na penumbra

eternizando-se nas horas.

 

sou assim. meu amor. no devorar dos movimentos

e das esperas. habitante de uma prisão vazia. prisioneiro

enraizado nas tardes que não possuo. se quiseres

recebe-me. comungaremos de novo a manhã no poema

e a noite infinita

nos lábios.

(inédito, 1973)


e digo:

 

não suspiro nem respiro. espero

o pressentimento do teu corpo a chegar

sem alento. recebo a tua voz aglutinada,

restaurada por um vento ilhéu, isolando

o som da dor deste soluço a se afundar na

água azul, ensopando a madeira das montanhas,

e misturo-me nos teus cabelos longos

abraçado às palavras baixas, desencontradas,

a nascer nos teus lábios suados. toco-te

e mexes-te. aconchegas-te amareladamente

entre o espaço da corola dos meus dedos

e desfazes-te nos raios de sol da tua cor

agonizante. deixo-me sem sangue, morto,

derrubado e enterrado no teu leito

de ervas vivas e macias. vejo-te

surgir devagar, através das horas,

mutilando o calendário, enlouquecendo os dias

e, amolecido de contentamento, nem sinto

entrares nos meus olhos, nas minhas mãos,

sem a força de um rosto firme

    nem o ímpeto da fera em cima

da presa

    e digo:

maio manhã flores cordões e há quem morra

    e há quem ame e renuncie

    e na ilha aparecem mais homens desarmados

    na luz calma, no espelho incandescente

    da vida

    e ressuscito lentamente no mês em início

    sem o rubor da minha face flamejante

nem o aquecimento dos meus poros

    porque dum útero podre e velho

dos anos

    criou-se o tempo de reviver.

 (inédito, 1973)


SICÍLIA À PRIMEIRA VISTA

 

 

1

 

À chegada, escarpas

firmes no sonho do espanto.

Um calor que canta

na carne bem junto dos ossos.

 

No ar cheira a mistério:

há uma simbiose de verde cobrindo

o amarelo solar ao rasar o chão de flores,

misturando a terra

com o casario distraído de brancos

e cinzentos seculares.

 

No céu, se há nuvens,

elas afastam-se, sempre devagar,

no aconchego inesperado

das muralhas de pedra.

 

2

 

Observam as falésias

o mar que descansa junto aos barcos,

abraçando todos os cais

espalhados como dedos,

como folhas de árvores,

pelo corpo sinuoso da ilha.

 

Ali não se teme

as consequências nefastas

dos outonos trazidos por corsários

no rubor das paixões

derramadas sobre os vales.

 

É sempre o amor clandestino

quem está ao leme.

 

3

 

O olhar mora em Palermo.

As outras cidades confundem-se

com aldeias e os asfaltos com muros,

desdobrando-se em alpendres.

 

As aves, os abismos, os rochedos

e os caminhos parecem esculpidos

nos rostos de quem passa

desconhecendo o seu destino.

 

E entardece,

enquanto alguém pensa

no sal das montanhas

inexpugnáveis,

escutando o canto dos pássaros

 

e as sombras das carroças

simulam vida,

gemendo ao longe.

 

4

 

Abre-se a porta, uma janela,

puxa-se uma cadeira,

contempla-se o horizonte

e adormece-se numa cama

de hotel com olor

a alfazema, a vida.

 

Aspira-se a consciência

e escreve-se com suor

a palavra pecado

numa rua sem saída.

 

5

 

Somos atlantes. Seres

permanentemente em busca.

Perdemo-nos na escuridão dos largos,

assustamo-nos com a imponência

das mansões e afogamo-nos

no copo de um bar qualquer

imbuídos do espírito azul do faz-de-conta

como se acordar fosse a sina de partir.

 

O sono não é eterno. Como uma mulher

chorando, cansada de voar sobre as águas.

Ou de amar. De esconder mágoas. Ou de rir.

(inédito)


ELLA FITZGERALD:

MARFIM BRANCO E NEGRO

 

Visitas-me num desses dias de primavera

na bruma do desanuvear as pétalas

das flores em redor

e de repente acontece o amor.

 

Visitas-me devagar

como quem tem tempo

para adormecer no silêncio de todas as tardes

e nesse enlevo escuto a tua voz

e noto como ardes.

 

Nesses momentos

(é preciso confessar para a eternidade)

esqueço o hábito da escrita

as coisas comuns e banais da história

a tradição de habitar o vulgar e frágil quotidiano

e aí tudo volta a repetir-se

com a magia dos grandes acontecimentos.

 

Então reparo como voas

junto de um coro de anjos

acompanhada por uma orquestra celestial

sob a batuta de Duke Ellington

e como te pareces musicalmente

com o som quente e vibrante de um piano

quando levas solitude

até ao espaço sideral.

 

Pensando nisso decido descansar

calmamente

no marfim branco e negro

desse engano.

(inédito, Dezembro, 2002)


(*)José António Gonçalves, poeta madeirense.


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