versiones, versiones y versiones...renovar la aventura de compartir la vida con textos, imágenes y sonidosDirector, editor y operador: Diego Martínez Lora    Número 52 - octubre-noviembre 2003


Luiz Ferro Moutinho(*):

...Arrepios...


 

Não sei que tipo de bizarra curiosidade me trouxe até aqui, mas não foi decerto o tipo de curiosidade bizarra que acomete muitos condutores portugueses sempre que na contramão existe um qualquer tipo de acidente, provocando enervantes filas de quilómetros, pelo macabro hábito de conduzirem o mais devagar que podem, ao cruzar-se com a dita desgraça, para poderem apreciar cada um dos mais ínfimos pormenores do desastre, o número de carros envolvidos, a marca deles, especialmente se de alta cilindrada, sempre é um acidente de maior porte, o número de mortos, se os houver, o número de feridos, quase sempre os há, os estragos provocados, esses são garantidos, a acção da policia, que chega sempre tarde, dos bombeiros, dos paramédicos, dos homens das gruas e dos reboques, dando opinião, tentando antever e adivinhar as causas do acidente, os culpados, as vitimas, aqueles a quem deveria ser imediatamente retirada a carta, e comprazendo-se depois, com um pequeno sorriso, daqueles pobres coitados que estavam parados, na outra via, para atrás do acidente, formando já uma fila de vários quilómetros, que dali não iriam sair tão cedo, e que ainda não o sabiam, coitados, o nariz de fora da janela do carro, tentando adivinhar o que é que se teria passado mais adiante, e o que motivaria toda esta enervante paragem, seria algum acidente, talvez, Deus queira que não que está a tarde toda estragada, esquecendo-se na sua bem-disposta piedade pela infelicidade dos outros, que eles próprios tinham esperado já bastante tempo na sua faixa para chegar agora a sua vez de desfrutar daquela macabra visão na faixa contrária, e que muitos outros, na sua própria mão, esperavam agora muitos quilómetros lá atrás, sem qualquer tipo de necessidade, que eles esgotassem o seu apetite voraz pela desgraça alheia, e decidissem por fim acelerar o carro pela estrada desimpedida à sua frente, que de facto sempre o estivera naquela faixa de rodagem, e deixassem espaço livre para os próximos curiosos abrandarem. Não, a mim não me fascina nada esse tipo de curiosidade, antes desvio o olhar, olho para o outro lado, recuso-me a participar do espectáculo da exposição da dor alheia, não a quero para mim, nem como actor, nem como espectador, rejeito-a totalmente, e acelero mal possa, e o mais que puder, não por frieza ou desumanidade, se o acidente tivesse acabado de acontecer poderia parar para ajudar naquilo que fosse preciso, mas depois de acontecer, depois da chapa batida, depois dos corpos estendidos, depois do espectáculo montado, não, parece-me sádico, doentio, absurdo, e acelero cada vez mais, toda a gente merece respeito, até os carros merecem respeito, e as pessoas não devem ser vistas assim, estiradas pelo chão, em poses bizarras, como marionetas a quem cortassem as cordas e caíssem redondas, têm o direito a serem lembradas conforme eram em vida, ainda há alguns minutos atrás, e também os carros têm o direito a serem lembrados conforme eram, brilhantes e luzidios, e não naquele monte de chapa retorcida e carbonizada em que agora se encontram.

Também não foi decerto por não ter mais nada para fazer, antes pelo contrário, o meu tempo é pouco e encontra-se já bastante esticado, tenho horas para tudo, tudo demais para horas de menos, tempo esticado demais para que pudesse ser por falta do que fazer que aqui me encontrava agora, comprometendo muitas outras coisa que tinha de fazer, ou que pensava que tinha, pelos vistos não, a meio de uma tarde, a meio de uma semana. E não foi decerto por paixão clubista, embora tenha que a assumir, mas esses foram outros tempos, foram outras idades, agora já não é nada assim, a paixão contínua, é um facto, mas em diferentes graus, existem agora outras paixões, outras prioridades, outras motivações, o lençol é curto, tapa-se a cabeça, destapa-se os pés, continua-se com frio, e não seria decerto por paixão clubista que aqui me encontrava. Muito menos seria pela festa prometida na inauguração, até me rira disso, o que eles não inventavam para levarem o dinheiro às pessoas, embora as surpresas anunciadas fossem muitas e boas, senão vejamos, música, magia, futebol, fogo de artifício, um azulejo prometido a cada espectador, quem sabe dos antigos quartos de banho, o nome de todas as pessoas escrito num painel executado por mestre Júlio Resende, já não se pode ir ao futebol incógnito, e até um espectáculo em que algumas dezenas de elegantes raparigas iriam descer sobre a multidão, suspensas por cordas dependuradas na cobertura do estádio, como ninfas aladas, de tudo isso me rira, e nada disso me impressionara deveras, logo, tudo menos a festa, ainda por cima uma miragem tão distante, me tinha trazido até aqui. Mas o que seria então que, com tanto para fazer, me trouxera aqui, neste improvável meio da tarde, neste improvável meio da semana? Para ser completamente honesto, e quem diz a verdade não merece castigo, a razão que aqui me trouxe nada tem de interessante, e muito provavelmente eu tinha vindo aqui mesmo por, desiluda-se quem pensava nalgum tipo de motivação poética ou metafísica, simples deformação profissional. Engenheiro de profissão, provavelmente tinha decidido vir aqui apenas para ver aquele momento mágico em que a obra está quase acabada, mas em que ainda não está completamente acabada, em que as marcas das cicatrizes ainda não desapareceram totalmente da pele do paciente, em que ainda existem buracos no chão, os passeios por executar, os andaimes por desmontar, faltam os últimos retoques de pintura, os jardins por acabar, a relva por plantar, aqueles últimos dias em que a obra ainda não se transformou em casa, em estrutura, ou em arte, o rascunho em arte final, para avaliar as dificuldades que tiveram na execução, e antever com olhos avalizados o resultado final, é quase como assistir a um nascimento ainda antes do parto, espreitar para dentro da barriga da mãe, ver a criança ainda no feto, sim, isso definitivamente ali me tinha levado.

Estaciono portanto logo no início da recém inaugurada Avenida das Antas, avenida é favor, parece mais uma praça, e proponho-me descer a pé até ao estádio, gozando do prazer da antecipação, de usufruir lentamente da absorção de todos os pequenos pormenores à medida que eles se me iam desvendando a cada passo que nos aproximávamos, eu e o estádio, observador e observado, avaliador e avaliado, dando-me a mim mesmo rédea larga para livremente me deixar deslumbrar, nada mais me agradaria, quando senti um arrepio percorrer-me de uma ponta à outra do corpo. Da praça vê-se o estádio, pensei estupefacto. Está a gozar connosco, pensarão os atónitos leitores, tão atónitos como eu espectador, está a gozar connosco, evidentemente, repetirão os leitores já de cenho carregado, pois como quereria ele que da praça não se visse o estádio, pois se ele para lá se dirigia a passos largos como não o haveria de ver, ainda por cima uma coisa tão grande, tão alta e tão imponente como é um estádio, como não o haveria de ver, repetirão. Mas não, prezados leitores, não estou a gozar convosco, nunca o faria, pelo menos não desta forma, tão clara e tão aberta, se escolhesse gozar convosco seria sempre de uma forma mais discreta, mais subtil, muito menos evidente, e não assim, à escancara e á descarada, isso não, porque a educação e o decoro a isso me impediriam. O que eu queria dizer é que da praça se vê realmente o estádio, mas não as paredes do estádio, caros leitores, ou a cobertura do estádio, senhores, esses claro que teriam de se ver, esses vêem-se em todos os estádios do mundo, porque haveria isso de me surpreender, mas o que eu via era realmente o interior do estádio, eu via as bancadas, as cadeiras, as portas de acesso às bancadas, e os corredores de acesso às cadeiras, a parte de baixo da alva cobertura, que como que planava levemente sobre todo o estádio, e senti um novo arrepio percorrer o meu corpo, desta vez de pânico e de horror. Faltava uma fatia do estádio, intuí, habituado a ver obras todos os dias, e a lidar com estas situações caricatas. Quem é que se teria esquecido de construir aquela parede, que assim desvendava completamente o interior do estádio, sujeitando-o a todo o tipo de ventanias pelo interior, e de indiscrições pelo exterior, e, partindo do princípio de que decerto mais alguém para além de mim já se tivesse apercebido deste terrível lapso, como poderia isto alguma vez ser corrigido, e a sê-lo haveria porventura tempo útil de o fazer até à inauguração? Foi com esta terrível dúvida na consciência que continuei a aproximar-me, sentindo agora um pungente aperto no coração, a antiga paixão clubistica agora subitamente reavivada pelo vexame que iria ser a inauguração de um estado inacabado, ainda por cima á frente de tanta gente, estrangeiros e tudo, a que faltava nada mais nada menos, do que uma fatia inteira de um dos lados, como um bolo que tivesse sido aberto ainda antes de se apagarem as velas. Da praça vê-se o estádio, repetiu cada um das células do meu corpo, falando entre si. No entanto, cada vez mais perto, o coração nas mãos, pelas conversas soltas de outras pessoas, que não costumo ouvir, mas que por vezes acontece, que por diferentes motivos dos meus estavam no mesmo local do que eu, percebi que não, que afinal aquilo era mesmo assim, não era defeito, qual esquecimento, era rasgo de arquitecto, a ideia era mesmo que da praça se pudesse ver o estádio, como um chamariz, um engodo, uma espécie de isco, como uma atraente mulher que cruzasse provocadoramente a perna, desapercebida, desvendando aos nossos olhos gulosos a curva bem torneada da sua silhueta, enquanto se fingia distraída e desinteressada, falando casualmente para o lado, rindo com gosto, sem nos parecer prestar qualquer atenção ou sequer aperceber-se de que nós lá estamos, assim era também o estádio. Surpreendido, deslumbrado, atónito, apalermado, agora verdadeiramente arrepiado, dirigi-me mais para o outro lado, rodeei ainda mais o estádio, como galã que rodeia a sua dama em busca do melhor pouso, e vi que a ousadia continuava, o estádio dobrava-se também sobre si próprio, e a outra bancada desvendava-se já também perante os meus olhos arregalados, de criança que pela primeira vez vê o mar. Recordei outros tempos, tempos idos, tempos de maior paixão, talvez não maior, diferente talvez, de maior dedicação porventura, em que nas asas dessa paixão acompanhei a equipa a outros lugares sagrados, Nou Camp, Old Trafford, e percebi que em tempos idos tinha passeado os meus olhos por lagos e poças, mas nunca tinha realmente visto o mar, que agora se estendia prazenteiro à minha frente. O relvado é que não há mesmo maneira de se ver, ouvi dizer perto de mim, acordando-me do meu sonho. Aproximei-me por isso o mais que pude do estádio, mesmo até ao limite da rede de vedação, a não mais de vinte metros decerto da entrada do estádio, pus-me em bicos de pés, saltei, pulei, mas nada, nada se via, era mesmo verdade, sorri, o estádio era mesmo uma mulher, desvenda-se mas não se mostra, promete-se mas não se cumpre, insinua-se mas não se revela, podiam os artistas deambular sossegados lá em baixo que ninguém cá de fora os veria, talvez apenas de vez em quando uma bola desajeitadamente chutada para o ar por algum artista menos dotado, há muitos por aí, apareceria ao espectador não pagante, antes de Newton e as suas arreliadoras leis da gravidade a levarem de novo para baixo, impedindo-a de permanecer girando eternamente sobre o estádio, pois Mário Jardel já aqui não está, Supermário já não mora nesta casa, não voa já sobre os centrais, e nenhum dos outros artistas tem asas como as suas, que lhes permitam sorrir para o povo da alameda transformada em praça, e que da praça olham extasiados para o estádio que não desvenda o seu mais precioso segredo, como a mulher que desvenda um pouco mais a longa perna cruzada, preguiçosamente, indolentemente, aguçando-nos o apetite e parando-nos o coração, e ela parece cada vez mais distraída e absorta na conversa, alçando ainda um pouco mais a perna, e nós suspensos de cada gesto, de cada ângulo, de cada centímetro de pele, está quase, quase, quase, mas não, mesmo sem olhar ela parece conhecer perfeitamente todos os limites da sua saia, sem se parecer aperceber parece saber até onde pode esticar a sua racha, conhece cada centímetro do seu corpo, sabe o ponto exacto até onde pode curvar-se, e contínua a falar para o lado, sem nos demonstrar que sabe que ali estamos, agora um pouco mais alto, o riso um pouco mais forte, no controlo perfeito da situação, e nós cães babados de cio, esperando por algo que nunca virá, e assim é também o estádio, feminino e atraente, provocador e deslumbrante, mas cioso das suas riquezas e intimidades, a saia não estica, a perna não abre mais. E foi nessa altura que, contra todas as minhas melhores expectativas, tomei uma decisão, da qual o maior surpreendido fui eu próprio. Eu queria estar lá dentro, conhecer aquela mulher, partilhar das suas entranhas, desvendar os seus segredos, não queria ser o amigo contemplativo e platónico, mas sim o amante fogoso e voraz, e, quase como num sonho, o meu rosto volta-se lentamente para o antigo estádio, onde tantas tardes e noites de alegria, e algumas também de tristeza, tinha vivido. Ali estava a solução para os meus problemas, a redenção para os meus desejos, a cura para os meus males, mas, pensei, tudo estava por fazer, do que era necessário, tudo estava por tratar, é assim o tempo, tempo de menos para afazeres a mais, e não há altura como o agora, não há tempo como o já. Subi por isso de novo a velha rampa que tão bem conhecia, com a firme decisão que só dali sairia com um bilhete na mão, fosse como fosse, custe o que custar, são assim os amantes, não há preço para a paixão, mesmo que fugaz, mesmo que ilusória, mesmo que passageira.

Mas a amante era tortuosa, são-no sempre as amantes, mostram-nos sempre os espinhos, antes de nos deixarem saborear a rosa, quem quer quer, quem não quer larga, há um preço para tudo, e uma mulher bonita nunca se entrega de graça, há provas para vencer, obstáculos para ultrapassar, o trofeu é só no fim. Três filas diferentes, cotas, lugar anual, e bilhete, três locais diferentes, dois pisos diferentes, e no último a surpresa, depois da fila vencida a notícia, pagamentos só em cheque ou em dinheiro, cartão não, o protesto veemente de quem tinha acabado de pagar com cartão importâncias bem maiores no piso de cima, e de quem tinha esperado inutilmente na fila, como é que alguém neste clube não se tinha lembrado de fazer passar um terminal de multibanco para o piso de baixo, decerto o presidente não sabe disto, do outro lado a calma e a serenidade de quem sabe que tem razão, razão assente no facto consumado, Inês é morta, o leite derramado, e na impossibilidade de a minha argumentação poder alguma vez fazer aparecer um terminal de multibanco aonde ele não existe, e agora, agora era dirigir-me ao multibanco mais próximo, «próximo» é força de expressão, vê-se logo que vai continuar ali sentada enquanto eu vou penar por essa estrada acima, notar que à saída a fila era agora mais do dobro daquela que eu tinha apanhado inicialmente, aproximava-se perigosamente a hora de saída dos empregos, talvez se me despachasse conseguisse, subi revoltado a rua, amaldiçoando a minha pouca sorte, eu que ando sempre com cheques, e quando cheguei finalmente à caixa multibanco outra surpresa, uma fila tão grande como a dos bilhetes, maior ainda decerto, outros incautos como eu, todos em busca de dinheiro vivo para comprarem os bilhetes, algumas das caras reconheci-os da fila do estádio, não me apercebi de que tivessem também saído sem bilhete, não me consolou minimamente o facto de também eles ali estarem, pelo contrário, como iriam levantar dinheiro primeiro do que eu, também engrossariam a outra fila, lá em baixo, primeiro do que eu. Finalmente chegou a minha vez, não há mal que sempre dure, levantei o dinheiro à justa, e corri pela rua abaixo, tentando antecipar-me ao inevitável, que foi encontrar uma fila duas vezes superior à fila que tinha deixado ao sair, que por sua vez era duas vezes superior à fila que tinha enfrentado inicialmente. Conformei-me, com o conformismo de quem sabe que até à noite ainda era dia, e esperei pacientemente pela minha vez, que acabou por chegar um dia, não me lembro de qual, mas quando finalmente chegou, e depositei com alegria o dinheiro na mão da simpática menina que desta vez me recebeu, e peguei no tão desejado bilhete, e numa caixa completamente vazia, onde esperançosamente algum dia viria a colocar um azulejo, nada daquilo que aconteceu pareceu ter já qualquer importância para mim, tinha sido tudo numa outra vida, e agora a única coisa que importava realmente era o dia da inauguração, que nunca mais vinha, chama-se a isto a antecipação dos amantes, e, é mesmo verdade, não sou louco nem estava a sonhar, ouvia já ao longe o ribombar do fogo de artificio, e a música, e a magia, o famoso azulejo pesava-me já na mão, ou melhor na caixa agora menos vazia de ar, e mestre Júlio Resende desenhava já delicadamente com mão firme a primeira curva do meu nome, enquanto que do céu caiam rodopiando sobre mim ninfas aladas suspensas por cordas, enquanto o dragão pousava triunfalmente pela primeira vez a chuteira na relva do seu novo covil. Ao sair olhei gulosamente uma última vez para o estádio, ainda em estado de choque, ainda em estado de graça, invadido pela louca febre dos amantes. Da praça vê-se o estádio, pensei outra vez, de facto não conseguia pensar noutra coisa, o que é que se há-de fazer, quando se gosta, gosta-se mesmo, é assim o amor, não há volta a dar. Senti um novo arrepio, desta vez não soube do que é que seria, talvez pela primeira vez a mulher tenha olhado de relance na minha direcção, um sorriso rápido, um piscar de incentivo, um sinal de presença, afinal estás aí, dizia ela, já esperaste que chegue, decidi agora reparar em ti. Sorri. Tudo aquilo que desde sempre me tinha atraído para o futebol tinha sido a masculinidade do jogo, e agora, louco imprudente,  tinha-me deixado desajeitadamente seduzir pela feminilidade de um estádio. Sorri também, e despedi-me até breve da minha amante. Dentro em breve eu seria um dos que, dentro do estádio, poderiam olhar a praça.


(*)Luiz Ferro Moutinho, romancista português. Mora na Senhora da Hora. Publicou 2 livro pela Editorial 100: A rapariga que desenhava as estrelas... e Não sabia que procurava o amor até te encontrar...


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