versiones, versiones y versiones...renovar la aventura de compartir la vida con textos, imágenes y sonidosDirector, editor y operador: Diego Martínez Lora    Número 53 - diciembre 2003 - enero 2004


José António Gomes

A Casa, o corpo, o retrato

Para uma leitura de No Ventre da Maré Cheia, de Maria José de Castro


Num dos mais belos poemas de No Ventre da Maré Cheia (Porto: Editorial 100, 2004), o segundo livro de Maria José de Castro (que em 2001 se estreou com Drave – O Rosto das Palavras, Matosinhos: Contemporânea, 2001), pode ler-se:

As casas tinham portas e janelas.

As casas tinham braços.

As casas balançavam-se por cima das vidas

e  continuavam.

As casas contavam histórias, matavam, riam

festejavam.

As casas acendiam lareiras e fogões

eram casas sempre acesas.

Acordavam e adormeciam sem relógio de pulso.

As casas bebiam, maltratavam

amavam e pariam.

As casas também envelheciam.

As casas sobreviviam. (p. 60)

 

Na sua estrutura anafórica, este poema coloca em evidência uma das figurações mais obsessivas do nosso imaginário, a que a poesia e a ficção narrativa não se têm cansado de regressar. De imediato vêm à memória, entre outros, um célebre verso de Ruy Belo («ah as casas as casas as casas») e os estudos de Gaston Bachelard, em A Poética do Espaço, que detidamente analisam, como é sabido, as múltiplas representações da casa na poesia, e a constelação de significações que a sua presença pode desencadear.

No poema de Maria José de Castro, é possível reencontrar intensas imagens poéticas da casa: como corpo e lugar do desejo, como cenário da vida e da morte. Na casa e por dentro dela se viaja, e na casa se vivem diferentes experiências do tempo: um tempo que corre, inexorável, e um tempo que por vezes se detém (e este pode ser, por exemplo, o da infância ou o da paixão). Leia-se, a este propósito, um verso do poema «Mas ficávamos»: «no intervalo dos dias permanecíamos» (p. 62).

Interessa-me, no entanto, reter a casa, para sublinhar um eixo estruturante deste livro. É que a casa é também concha, por vezes refúgio do sonho, da fantasia e da intimidade (como acontece em tantas das poéticas ficções e crónicas de uma autora tão relevante como Luísa Dacosta). E a poesia de Maria José de Castro é, acima de tudo, uma escrita da intimidade, de acento claramente feminino. Por isso, as figurações do desejo, apenas sonhado, meditado ou já em movimento, ocupam lugar central neste livro e condicionam as opções lexicais e imagísticas, muito ligadas à corporalidade e às umbilicais relações do corpo com os elementos naturais e cósmicos, como o mar e as estrelas, por exemplo:

 

Nocturno

 

Acordei

com o mar a cair-me das mãos.

 

O teu corpo tinha anoitecido

e o meu olhar

era só uma estrela carente. (p. 44)

 

Escrita da sensorialidade e, consequentemente, da sensualidade, em que o tacto (mas também a visão e o gosto) adquire preponderância, a poesia de No Ventre da Maré Cheia gosta da palavra «pele» e glosa por isso, com frequência, a tópica das mãos, a que são dedicados diversos textos – por exemplo este, que não anda muito longe da poética minimal do haiku japonês:

 

As mãos (I)

 

Fazermos de vinte dedos uma mão

como quem faz um mar

de duas gotas de água. (p. 30)

 

Estas mãos, como se vê, tendem a unir-se, almejando fundir-se numa só, como se o propósito fosse eliminar a distância entre o eu e o tu, pólos fundamentais desta escrita (leia-se o poema «Fragilidade», p. 45). Em boa verdade, porém, esses dois pólos estão impedidos de se tornarem um só, mas sabem desfrutar o prazer quase perverso do distanciamento e do reconhecimento feliz das diferenças:

 

Contrastes

 

Quando os teus olhos me acusarem

gritantes

os meus responder-te-ão

com um silêncio angular.

 

Quando as tuas mãos me roçarem

acutilantes

as minhas abandonar-te-ão

imóveis e dormentes.

 

Para ti serei sempre o contrário

pois são as nossas distâncias

que nos tornam igualmente perversos

e insanos e apetecidos. (p. 13)

 

Não passa também despercebido o facto de estas composições poéticas perseguirem algumas utopias, uma das quais se prende com a questão do retrato, ou melhor, do auto-retrato – essa representação permanentemente tentada mas nunca atingida, seja na escrita, na pintura ou mesmo em face dos mentirosos espelhos, pois o eu estranha a sua própria imagem, e – disse-o Rimbaud de forma definitiva – «je est un autre». Leiam-se o poema «Espelhos» («Há espelhos que nos mentem / devolvendo olhares que não são os nossos.», p. 37) e este outro, intitulado «Retrato»:

 

Abro os olhos e sinto o branco. Olho o interior

e recupero todas as cores. Espero o tempo de

saber pintar, para cobrir na tela, o retrato de

dentro de mim. (p. 40)

 

Independentemente dos muitos textos poeticamente felizes deste livro (além dos que já citei, poderia referir «Picos», «Palavras», «Ao poeta», «As crianças», os poemas dedicados às mãos…), direi a terminar que se lêem muitas centelhas de felicidade enunciada, nesta escrita gerada «no ventre da maré cheia». Mas, como acontece em toda a poesia, a beleza é sempre frágil e efémera. E os poemas de Maria José de Castro não deixam por isso de traçar o mapa dessa irrasurável inquietação, mesmo quando ela é dita num registo de grande subtileza:

 

Ruas

 

Leitos de pedras desenhados

à mão

onde os passos fluem com margens variadas.

 

Podes seguir sozinho.

Podes nem seguir.

 

Ficar parado apenas

a roer as horas de qualquer esquina. (p. 51)

 

Porto, Casa de Vilar, 7 de Fevereiro de 2004


(*)José António Gomes, poeta e crítico português.


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