versiones, versiones y versiones...renovar la aventura de compartir la vida con textos, imágenes y sonidosDirector, editor y operador: Diego Martínez Lora    Número 53 - diciembre 2003 - enero 2004


Marlene Reis

Razões múltiplas - Capítulo primeiro


A noite parece interminável na forma como desgasta os meus túrbidos pensamentos. Este ar fúnebre, intimamente impregnado nesta gente, faz-me voltar ao momento presente. Dizem-me o grande homem que foi, recorrendo a palavras que conferem uma indubitada certeza aos sentimentos. Ninguém se apercebe desta indómita sensação de perda que procuro simular com uma atitude maturescente. As lágrimas são o único vestígio da minha dor: não consigo impedir que se manifestem perante esta multidão. Despeço-me dos familiares e ausento-me.    

            O negrume no céu completa irremediavelmente o ambiente lutuoso que se fazia sentir na capela. Já é noite. Os faróis das viaturas indicam-me o caminho a seguir. Goteja sobre o terrento trajecto: vejo-me obrigado a alargar o passo. Só me ouço inspirar e expirar todo o ar possível como se esses movimentos não me dessem oportunidade para pensar. Quando o faço, procuro sentimentos alífugos que me facultem a alienação. 

            A desesperança que sinto parece não afectar os vizinhos que insistem em impedir-me a passagem, para me dizerem que lamentam. Já sei que sim, não precisam de o fazer, constantemente, como o fazem há meses, desde que a sua doença foi detectada. A escadaria, momentaneamente ínvia, retém-me. Apresso-me a abrir a porta para que não julguem precipitadamente a minha irascibilidade.  

            Debaixo da porta tenho cartas dos meus alunos que dizem sentir a minha falta. Tocam à campainha: a minha namorada, preocupada, pergunta-me como estou. Não sei porque me pergunta: parece não discernir a irrelevância da questão. Como resposta, viro costas. Reconheço que necessita de sentir que é útil neste preciso momento, mas não o é. Noutros momentos, talvez. Não lhe agrada a minha atitude, mas ela mantém-se firme, como se tivesse uma missão a cumprir. Não sei qual. Ela insiste em proferir as mesmas palavras até à exaustão. Já compreendi que me ama. Neste momento, não a amo, não amo ninguém nem a mim mesmo. Tento reformular. Ela não me deixa. A sua fúria, sempre contida, enfurece-me. Enfureço-me, estou furioso, justificadamente. Talvez porque me apetece ficar sozinho. Olhamos frontalmente um para o outro. As suas lágrimas não têm o mesmo sabor das minhas. Sentamo-nos no sofá, não falamos. Ela abraça-me compulsivamente, como sempre, todas as vezes que nos chateamos. Agora é uma dessas vezes.

            Toca o telefone. Fico feliz: ouço a voz ainda inocente do meu filho, com a certeza de que ele não sabe que estou triste. Achei que seria melhor não lhe dizer. De qualquer forma não saberia como lhe explicar o sentimento de perda… Ele deve saber: vemo-nos pouco. Pergunto-lhe o que faz: diz-me que brinca; pede-me para ir brincar com ele. Arranjo a desculpa de que tenho testes para corrigir. Ele compreende, como sempre. A mãe vem ao telefone, pergunta-me com quem estou, relembro-a que já não somos casados. Desliga imediatamente o telefone. Olho para a minha namorada com a certeza de que ela tem algo a dizer, mas não diz. Ainda bem. Levanta-se. Insiste em preparar-me o jantar. Não me incomoda que o faça. Aproveito para ficar sozinho, na sala, onde me refugio inúmeras vezes, mesmo quando não estou acompanhado. O jantar está pronto. Sento-me à mesa. Continuamos sem falar. Não tenho fome, mas obrigo-me a ser educado e provo. Confesso que aprecio a forma como cozinha para mim: não pelo que cozinha, mas pelo tempo que demora a fazê-lo. Acho que faz de propósito para eu poder ter os meus momentos. São muito poucos, esses momentos. Pergunta-me, desnecessariamente se estou mais calmo. Já conhece a resposta, por isso não respondo. Não insiste: compreende que não poderia fazê-lo. Levanta-se e deixa no ar um olhar reprovador, como se eu tivesse a obrigação de a fazer feliz. Não tenho! Hoje, não. Amanhã, não sei. Nos próximos dias, talvez… Não me apetece fingir que estou bem… Apenas para o meu filho e para a minha mãe. Preciso de os ter por perto: não acontece, por motivos distintos. A minha namorada sente que não estou ali, naquele espaço. Abraça-me compulsivamente, como se fosse a última vez e vai-se embora.

            Telefono ao meu melhor amigo que me convida a ir até sua casa. Não penso se poderei incomodar. As nossas conversas costumam animar-me. Confesso que até já nem me incomoda o amigo com quem vive. Em tempos incomodavam-me porque achava que a relação entre homem e mulher seria a única capaz de perdurar no tempo. Enganei-me: estou divorciado. Pego nas chaves do carro, mas lembro-me que o deixei no mecânico. Chamo um táxi. A viagem demora cerca de meia hora. Chego, bato à porta, o companheiro do Alexandre abre. Diz-me que lamenta o sucedido. Acho que sabe o que sinto: ficou órfão muito cedo. A casa é bastante acolhedora. Os livros são os principais ornamentos, para além dos seus quadros. Foi a pintura que nos aproximou, através de um amigo em comum. Depois disso, mantivemos o contacto: gostos similares. O Alexandre dirige-se até mim com aquele ar de quem lamenta irremediavelmente. Ficamos sozinhos. Ainda bem. Pergunta-me pela Sofia. Conto-lhe o sucedido. Não fica feliz: a Sofia é sua irmã. Relata-me o telefonema que ela lhe fez enquanto preparava o jantar em minha casa. Não gostei de saber que ela lhe liga quando nos chateamos. Procuro justificar os meus actos. Ele parece compreender, ou simula que compreende. Não me importo: a situação tornar-se-ia constrangedora. O seu bom senso é característico de um psicólogo. Bem sei que tenta manobrar os meus sentimentos, procurando constantemente paralelismos com os meus dissabores passados. Ouço-o atentamente. Respeito-o, não pela idade, mas pela sua sabedoria. As horas passam sem darmos por isso. Insiste, na despedida, no facto de que devo começar a trabalhar (não o faço há dois meses) e de que os meus alunos precisam de mim. Tem razão. Tem sempre razão. Agradeço a boleia que me dá. Deixa-me em casa.

            É Sábado. Acordo um pouco mais feliz: é dia de estar com o meu filho. Aqueço os restos de comida da noite anterior. Reconheço que a minha namorada cozinha bem. Nem as horas de espera pelo autocarro me incomodam: é por uma boa razão. O Ricardo é uma boa razão. Lembro-me de quando nasceu. Na altura ainda era casado e feliz. Este último ano tem sido bem pior. No apeadeiro, já o vejo à janela à minha espera. O seu sorriso contagia-me. Prefiro estar com ele em casa: está frio. A mãe é que não deve gostar de me ter por perto muito tempo. Convenço-a. Ela deixa-me ficar. Nunca percebi porque nos separámos: éramos felizes. Diz que o casamento se tornou monótono. Que sabe ela de outros casamentos? Pensará que outros casais não terão maus momentos?! Acho-a cobarde, é só. Não quis esperar para saber se nos poderíamos entender, pelo nosso filho. Isso não a preocupa: tem a certeza que o Ricardo não precisa de mim. Bastava perguntar-lhe para saber que não é verdade. Desculpa-se no facto de que eu só vivia para os meus pais. E se fosse?! Não quero pensar nisso agora. Aproveito para estar com o meu filho. Ensino-lhe o significado de novas palavras, faço com que leia histórias infantis. A mãe deveria ouvir as nossas conversas: talvez aprendesse um pouco mais. Nunca quis. Sempre preferiu trabalhar na fábrica. Nunca desejou ser mais culta. Defendia-se apenas com as horas que trabalhava. Não queria que assim fosse. Nunca desejei que tal acontecesse. Preferiu dessa forma. Que continue.

            Despeço-me do meu filho apenas com a alegria de que o verei na próxima semana. Ele fica a chorar. Sinto-me impotente. Gostaria de apagar esta sensação de vazio, agravada por um sentimento incontornável de paragem do tempo.

            Já é noite. O céu apresenta-se ainda mais escuro.


(*)Marlene Reis, escritora e educadora portuguesa.


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