versiones, versiones y versiones...renovar la aventura de compartir la vida con textos, imágenes y sonidosDirector, editor y operador: Diego Martínez Lora    Número 53 - diciembre 2003 - enero 2004


Rita Moreira(*)

2 de Cartas a Vincent(*)


03 de Maio de 2003

 

            Querido Vincent:

Já me perdi. É tarde e passou o nosso tempo. Paremos de fingir que ainda acreditamos, abre a persiana e encara o cinzento, respira o cinzento baço, a falta de ventania quente, abre a persiana para nenhuma cor. O tempo de cerrarmos as pálpebras com força passou, foi descoberta a nossa mentira.

Abre a janela e pára de chorar baixinho cá dentro.

Agora é o tempo dos outros. Encontraram-nos assim, após tantos anos, e até eu me ri alto, tonta. Porque foste responder: “não sei”, porque não mentiste? Faltou-te a coragem que também já não sinto e disseste para quem quis saber: “estamos perdidos”.

Tua,

 

                                                                       Rita


 

                        sábado, 18 de Outubro de 2003

 

Querido Vincent:

Vi o filme “As Horas” e encantei-me. Tornei a rever certas passagens. Todas as tonalidades do filme ainda me envolvem. É, com toda a certeza, um dos meus filmes preferidos de sempre. Gostei mais do filme do que do livro. E fiquei curiosa da vida e obra da Virgínia Woolf.

Tenho tantas cartas perdidas nas minhas coisas que de vez em quando encontro uma desgarrada e tenho vontade de a reescrever como é o caso da carta de 25 de Novembro de 1995, sobre a importância do poema “Para onde levas os malmequeres?”.

Na altura escrevi:

“O meu poema em si é um eufemismo se comparado ao sentir do qual é ponto de chegada e, de novo, ponto de partida”. Lembras-te?

 

Arremesso brusco em solavancos e sofreguidão de imagens é o texto corrido, e, insisto, inventem-se novas esferográficas ou teclados, capazes de acompanhar o ritmo de uma carta qualquer deste interminável diário.

O poema em mim é sempre a última etapa, o apaziguamento. De que outra forma singela posso prolongar a febre apenas uns graus acima – em que o fresco arrepia mais a pele e o quente entorpece mais os músculos do corpo que amolece, baixas que estão as defesas. Curiosamente arrasto ao longo dos anos esses inícios insinuantes de gripe. Pouco resta no poema do que foi ou é o real; homenagem doce ao que guardei do real, embebido em diferentes temperaturas, com ou sem música de fundo. No dia a dia sente-se a falta surpreendente da banda sonora…

 

E então diz-se:

 

Para onde levas os malmequeres?

E os afastas de onde a minha mão alcança,

os escondes de onde a memória é limpa,

de onde os olhos conseguem ainda se sorrir.

 

(…)

 

Quero ainda que chegues

carregado de malmequeres.

Esperas que avance sem o cavalo,

um sono sereno longe do pássaro,

um futuro para lá dos bonecos das prateleiras,

que descubra outras mãos,

e não sei como.

                                                          

 

Fez-se o poema.

E, na verdade, poder-se-ia dizer da mágoa estrangulada e da revolta da tua ausência. Da forma absurda como trememos quando nos dizem para crescer agora e sair ao encontro de todos os outros. Dizemos do choro baixinho e da falta de embalo, dizemos de nós pequeninos e deslumbrados das promessas de outrora. Dizemos “malmequeres” para falarmos de amor. Já gritamos tanto o nosso espanto, já discordamos com tamanha veemência, reclamamos mil vezes até chegar ao poema.

E é agora o poema que guarda o todo do nosso sentir, cada gesto, palavra e sensação que levou ao final daquela tarde de Novembro. Nesse dia, tenho a certeza, o meu pai chegou de uma viagem, sou capaz de descrever a ida a casa dos meus avós após a espera no aeroporto. E posso ver-me sentada na sala depois do lanche (chá e torradas), a escrever este poema que preencheu assim uma nova carta.

Tua,

                                Rita


(*)Rita Moreira, escritora e psicóloga portuguesa.

(**) Livro publicado pela Editorial 100


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