versiones, versiones y versiones...Director, editor y operador: Diego Martínez Lora
Manuel Pinto Nogueira(*)
Um saloio foi à cidade
O Sr. Joaquim era um grande criador de gado bovino; quase tudo o que criava era vendido nas feiras. Por vezes apareciam por lá alguns compradores idos do Porto, propositadamente para comprar o seu gado; cuja carne tinha fama de ser saborosa e da melhor qualidade, pois, ele era um homem honesto e não dava rações nem hormonas para que o gado desenvolvesse depressa, dado que tinha muitos pastos e não havia necessidade de estar a contaminar a carne com produtos químicos, como faz a maioria dos seus colegas.
Ora vejam lá, sendo ele um grande criador de gado, andava a criá-lo para os outros e nunca provava, sequer, um bife; porque na sua terra não havia matadouro, comia outros tipos de carnes, menos de bovino. Se quisesse comer um bife de boi, tinha que se deslocar à cidade que ficava muito longe e dificilmente arranjava transportes. A sua aldeia chamada Braselisa estava situada no Alto Douro e era mais fácil deslocar-se ao Porto que ao seu concelho, que era a Régua.
Então, uma ocasião resolveu, juntamente com um amigo seu, ir ao Porto, de cuja cidade muito ouvia falar, mas que nunca lá tinha ido.
Ouvia falar do mar, que segundo diziam era muito grande, mas que também nunca o tinha visto.
Assim, depois de terem combinado, lá partiram no comboio os dois amigos. O seu amigo e vizinho chamava-se Galinha, era o único lá da aldeia que tinha família no Porto e, de vez em quando, lá se deslocava para fazer uma visita e levar uns salpicões à sua filha e ao seu genro, que muito agradeciam, porque enchidos daquela qualidade não se vendiam na cidade.
Quando chegaram ao Porto, saíram na Estação de S. Bento e ao passarem por uns engraxadores, o Sr. Joaquim viu um homem a pousar o sapato, em cima de uma caixa própria para engraxar; e, como conhecia o ditado que diz: «à terra onde fores ter, faz como vires fazer», ele logo pôs também o seu sapato numa outra caixa, dizendo logo o Sr. Galinha, muito chateado:
– Tira daí o pé, senão tens de pagar.
– Ai paga-se, então não quero – diz ele muito aborrecido.
Se calhar julgava que o homem estava ali a engraxar sapatos de borla, e que era mais parolo que ele !...
Depois lá continuaram e combinaram, à noite, encontrarem-se à porta da estação para regressarem a casa.
O Sr. Galinha foi à sua vida visitar a família, e o Sr. Joaquim foi dar uma volta para ver a cidade e o mar, aproveitando para, quando chegasse a hora do almoço, comer o tal bife de boi que levava na ideia, cuja carne nunca comeu, embora fosse criador desse gado.
Muito admirado, lá seguia o Sr. Joaquim e começava a cumprimentar toda a gente que via, com os bons dias, só que ninguém lhe respondia, dizendo para consigo que as pessoas do Porto ou eram malcriadas ou não ouviam bem, pelo que chegou a uma altura, (sempre abriu os olhos!...) não cumprimentou mais ninguém.
Ao chegar à Praça da Liberdade viu um carro-eléctrico parado, ficando muito admirado de ser uma casa com muitas janelas e com rodas de ferro; ao mesmo tempo que via entrar pessoas e a sentarem-se, ficando instaladas à janela.
Muito admirado, perguntou ao cobrador se aquela casa ia passar perto do mar e se também poderia ir, pelo que alguém lhe disse que sim – fazendo o cobrador ouvidos de mercador – , mas que tinha de pagar um escudo.
Lá entrou, e depois de ter pago, em vez de se sentar, foi para a beira do guarda-freio ver como ele conduzia a «casa com rodas!» Quando chegou à Praça dos Leões, o guarda-freio ia a travar com o travão manual, que era uma roda grande de latão, perguntou-lhe se ele ia virar para trás, ao que ele disse que não. Lá continuaram, ao chegar ao Jardim do Carregal, diz o Sr. Joaquim, novamente, para o guarda-freio:
– O senhor, por acaso não pode guiar por aquela rua, gostava de passar por ali, está a ver ?...
– Ó homem, você é burro ou faz-se, se calhar deve estar a mangar comigo, não vê que o carro não pode sair dos trilhos, disse o guarda-freio, com voz de trombone !...
O Sr. Joaquim ficou logo vermelho como um tomate maduro. Como vira o guarda-freio a dar à manivela grande, julgava que era um volante, como se a «casa com rodas de ferro» fosse conduzida como uma camioneta, só que não tinha reparado que as rodas estavam encaixadas no trilho.
Muito envergonhado, não disse mais nada, continuando admirado de tudo aquilo que via e de tanta gente a andar pelas ruas; que lhe fazia lembrar um grande formigueiro, cujas formigas andam umas contra as outras; era uma coisa incrível que depois iria contar à sua mulher.
E, assim a «casa com rodas de ferro» cada vez rolava mais depressa, até que, por fim, já se avistava o mar. Quando o Sr. Joaquim olhou e viu as ondas em movimento, perguntou se era o mar e se também era formado por grandes montanhas de água, ficando apavorado de ver todo aquele espectáculo da natureza!...
O guarda-freio depois de olhar bem para o passageiro é que notou que estava perante um saloio e, por isso, deu-lhe um desconto e pôs-se a rir, acabando por conversar com ele, informando-o bem de tudo que ele lhe perguntara, para que não lhe fosse acontecer alguma coisa de mal.
Por ali andou a fazer horas, até que chegou o momento de ir ao tal restaurante que o seu novo amigo – guarda-freio – lhe tinha indicado. Na realidade, o restaurante serviu-lhe um óptimo bife que o consolou, segundo dizia depois na aldeia: «que só por ter comido aquele bife, já lhe valeu a pena ter ido ao Porto.»
Quando acabou de comer, lembrou-se da sua mulher e teve pena de ela não o ter acompanhado, dizendo para consigo que, quando passasse por um talho, que iria comprar dois bifes para lhos levar.
Foi dar uma volta e, no primeiro talho que passou, comprou-os, a seguir foi ver a igreja de Matosinhos e por ali andou a passear no jardim, acabando por se sentar lá, num daqueles bancos de madeira.
Como tinha comido e bebido bem, adormeceu quase toda a tarde e só acordou quando já estava a ser mordido pelas formigas; os bifes estavam quase comidos, era um formigueiro à sua volta que metia medo...
Coitado do Sr. Joaquim, quando estava a tentar limpá-los, apareceram dois cães famintos que lhos arrancaram das mãos e ainda o tentaram morder, pelo que, não teve outra alternativa, senão deixar os bifes para os cães!
Entretanto, a noite começava a chegar, as luzes iam-se acendendo, paulatinamente. Como ainda estava farto do almoço, e não tinha feito bem a digestão do valente bife que comeu – talvez duro como cornos! – foi dar uma volta pela beira do mar, tendo depois passado a andar pelo areal fora.
À medida que se ia aproximando, o mar parecia-lhe um espelho, até que depois de se aproximar de mais, veio uma onda que o molhou todo, ficando a tiritar de frio sem roupa para se mudar.
Ao ir-se embora, viu um pobre com um capote muito velho, logo pensou que lhe poderia fazer jeito, pediu-lhe para que lho vendesse, tendo ele aceitado a venda por cem escudos, que olhando ao estado em que estava, já era bem pago.
Agora com o sobretudo vestido, o Sr. Joaquim já não tinha frio e resolveu entrar no carro eléctrico para se ir embora. Acontece que, por acaso, passava um, naquela ocasião, repleto de passageiros. Mal tinha acabado de entrar, imediatamente as pessoas começavam a sentir uma desconfortável comichão; as pulgas pulavam por todos os lados, saindo do sobretudo do novo passageiro. Era um autêntico enxame de pulgas enormes, pareciam joaninhas, que pôs toda aquela gentinha num alvoroço.
Imediatamente todos os passageiros começaram a saltar para fora do carro a toda a pressa, caindo uns por cima dos outros, pelo que em pouco tempo o eléctrico ficava quase vazio.
Quando o cobrador e o guarda-freio souberam que as pulgas estavam no sobretudo dum passageiro, também saíram imediatamente e deixaram-no sozinho lá dentro, enquanto foram telefonar aos bombeiros e à polícia.
Então, como os passageiros estavam aterrorizados a falar uns com os outros, nunca mais a «casa com rodas» começava a andar; o Sr. Joaquim como tinha visto da primeira vez, quando andou de eléctrico, o guarda-freio a trabalhar com a manivela, lembrou-se de fazer a mesma coisa, começando o carro a andar lentamente e a ganhar velocidade, atingindo em pouco tempo a Foz do Douro, tendo o Sr. Joaquim tido sorte por se ter disparado o automático e consequentemente faltado a luz, naquela ocasião, senão poderia ter causado uma grande tragédia e morrer.
Ali ficou parado o eléctrico, tendo o homem saído logo e entrado num táxi, que por sorte ia a passar, e o levou à estação.
Quando lá chegou já o seu amigo o esperava para se irem embora. Calou-se muito caladinho e lançou o sobretudo fora, sem que o amigo tivesse visto; pois, a roupa que vestia já estava quase seca.
Quando já ia no comboio ouviu através dum rádio, que procuravam um homem, cujo aspecto era de árabe, o qual tinha roubado um carro eléctrico, tendo usado como arma do crime, um sobretudo infestado de pulgas gigantes e venenosas – um autêntico arsenal de armas biológicas – que, segundo se dizia, fora mais uma nova arma, a juntar a muitas outras, criadas por Osama Bin Laden.
(*)Manuel Pinto Nogueira, escritor portugués. Mora no Porto.