versiones, versiones y versiones...Director, editor y operador: Diego Martínez Lora
Filipa Rodrigues(*)
Intimidade
Brincava contigo. Ríamo-nos, falávamos muito à mesa de um café qualquer. Roçava a minha perna na tua que era mais macia, mais branca. Tirava um guardanapo, desenhava o teu girassol e escrevia umas palavras que escondia na tua carteira quando te apanhava distraída. Uns dias depois ias guardá-lo dentro do teu diário azul ou de uma peça de roupa que ainda tinha o resto do meu cheiro. Sabia-te toda, conhecia as cores dos teus gestos, os ruídos das tuas expressões... a minha mulher-menina, ora anjo, ora demónio. Queria só aquilo, só estar. Tu toda, em todo o lado de mim; como me ficavas, como me comovias. E as tuas palavras, aquelas que se desprendiam da tua boca, como um tango violento, sempre presentes em tudo o que tocava. As minhas mãos em ti, toda. Musa doce, adormecida pelo meu cântico, tu que paravas para que eu me instalasse e nunca pedias perdão. Descias mais e mais, ias lá, ao fundo de mim onde só tu estavas e mais ninguém chegava, onde existia um tempo em que as rochas eram espuma; e ias sem medo ao fim do fundo de mim onde te deitavas num espaço em que nenhum outro corpo cabia, onde o sangue endurecia à custa do pecado.
Brincava contigo. Mais risos, conversávamos muito na cozinha que pedias emprestada. Baixava-me para te morder o tornozelo enquanto tu, toda malvada, toda atrevida, me torturavas com o cheiro doce do chocolate quente. Pintavas-me um coração castanho no peito que querias lamber. Eu escapava-te, provocava-te todos os sentidos até te fazer descer para além do permitido. Tu seguias-me, confiante e audaz, procuravas o rasto dos teus passos acabados de dar na areia do meu corpo. A matéria ardia e tu tocavas-me numa delícia. Mais, sentia-te mais, como num sonho, tu solta e eu a sentir o meu corpo encaixar-se no teu, a mexeres-te contra mim; bebia tudo, a tua pele, os sons que fazias, o teu desejo. De repente fechava-me, fechava-me sobre mim, mais e mais, para ir ao teu encontro, e resultava, sabia o teu sabor, os teus silêncios, os teus poemas preferidos, sabia como eras. Impressionavas-me. O teu porte altivo, a tua ausência provocada pelo último instante da minha vontade e eu a sentir-te às voltas dentro de mim. A querer prolongar o encantamento, a querer afundar-me em ti e a saber como ficavas quando te sugava, assanhada, doce, meiga, louca; a saber como as tuas mãos ficavam no meu peito, como a tua língua conseguia apagar aquele coração castanho que retinha em mim, mais tempo, para te castigar.
Soube-te toda e tropecei. Tropecei sempre nos minutos da despedida. Tropecei na certeza da tua permanência e na certeza da tua dependência enquanto me dizias:
“ Desconfia sempre da minha calma,
do meu silêncio,
dos meus gestos adultos.
Duvida sempre do meu sorriso sereno,
do meu sono agitado,
dos meus olhos inquietos.”
Hoje só penso e percebo. Percebo que alguém te sabe como eu soube, e que já não é minha a tua bola de palavras.
Penafiel, 14 Maio 2004
(*)Filipa Rodrigues Penafiel, 1975. Publicou pela Editorial 100: Quatro passos...