versiones, versiones y versiones...renovar la aventura de compartir la vida con textos, imágenes y sonidosDirector, editor y operador: Diego Martínez Lora    Número 56 - Junho - Julho 2004


José Pereira da Graça(*)

2 Excertos de Maria do Mar - Viagens & Mitos publicado pela Editorial 100


I

“Todos os homens consideram como bárbaro aquilo a que não estão habituados” (Montaigne)

“Tu és de todas as raças. Embora só te reconheças numa, por um incidente da História e da Geografia” (Jorge Chichorro Rodrigues)

 

POR FRANÇAS E ARAGANÇAS

 

 

Os componentes da Associação dos Antigos Tunos da Universidade de Coimbra, de parceria com os estudantes que, então, frequentavam as Faculdades e integravam a Tuna Académica daquela Universidade (TAUC), aprestaram-se para uma jornada até França, impregnados do espírito de eterna juventude, caldeado naquele ambiente académico, quais cavaleiros andantes dispostos a terçar armas por suas damas (as deles, francos...) eventualmente carecentes de desafronta.

Chegados à fronteira de Vilar Formoso, um pequeno problema aduaneiro provocou inesperada demora. Enquanto se esperava, veio à lembrança uma outra passagem nesta alfândega, em Dezembro de 1960, quando os antigos ainda eram novos e integravam, nessa época, a TAUC. Esta centenária instituição fora convidada, pelo Clube Rotário Internacional, a visitar o Sudoeste francês.

Antes de se transpor a fronteira, o representante do reitor da Universidade, companheiro oficial, mandou o presidente da direcção fazer uma clara advertência: era expressamente proibido falar sobre política e sobre religião enquanto se permanecesse no território espanhol ou francês.

 Isto dito a universitários, quase todos finalistas! Claro, no íntimo de cada um, esconjurou-se o respectivo fantasma e formulou-se, logo ali, o propósito firme de falar mesmo...

Aliás, como se havia de verificar, eram os franceses e as francesas quem, com a maior naturalidade, falavam frontalmente na ditadura que se vivia em Portugal e no torcionário cristalizado a comandá-la, o que para os ouvidos lusos era inquietante, mesmo quando a confidente era uma encantadora parceira de dança e esta afirmava, com a cara encostada ao portuguezinho inabituado a tais franquezas e liberalidades, o sabido por demais verdadeiro, mas ... indizível.

Esta maneira perturbadoramente chegada de dançar, então impensável em Portugal, levou um dos tunos, depois de bebido espirituoso bordeaux branco, com repetições significativas, a aproximar-se do microfone da orquestra. Pediu licença para uma curta intervenção. Tudo parou a olhar para ele. Então, declamou solenemente, pausadamente, olhos fitos nas raparigas, no meio de um silêncio completo, em bom e claro português:

 

- Roçai, meninas, roçai,

   Como Jean-Jacques Rousseau!

 

Claro que as meninas apenas entenderam a invocação do nome do célebre filósofo, por isso pediram explicações perante a risada geral de quem dominava o português. Feita a explicitação, segunda vaga de hilaridade ressoou na sala.

Mas continuemos a viagem. Ultrapassada a dificuldade alfandegária, chegou-se a Arad, antes de Salamanca, onde se almoçou. Retomada a marcha, no sentido de Tordesilhas, o ambiente morno e baloiçante do veículo tornou pesada a vigília. O João Miguel deixou pender a cabeça ao sabor dos movimentos do autocarro até encontrar o ombro quente e macio de Maria do Mar. Abandonou-se à sensação de conforto.

Na passagem por aquela cidade, naturalmente aflorou à memória  a figura de D. João II e o célebre tratado, entre portugueses e castelhanos, divisório das áreas de influência no Atlântico e na América. Foi um momento propício à evocação, na intimidade de ambos, da figura notável daquela personagem real.

- Numa época - disse João Miguel - em que a falta de conhecimentos lançava imagens alucinadas sobre a concepção do mundo e dos mares, fruto de devaneios sem limites, algo muito forte motivou aquele Rei a assinar um tratado de grandes consequências futuras, inimaginadas para a generalidade dos contemporâneos.

- Com efeito - acrescentou Maria do Mar - houve uma motivação tão importante como enigmática, pois parece haver um curioso pré-conhecimento de que, assim, se  assegurava algo já antes alcançado através do Tratado de Alcáçovas, celebrado com a mesma motivação.

Na verdade, segundo este Tratado, ficaria para Portugal tudo o existente a sul das ilhas Canárias, isto é, “qualisquier otras islas, costas, tierras, descobiertas e por descobrir, falladas e por fallar, islas de la Madera, Puerto Santo e desiertas, e todas las islas de los Açores, e islas de las Flores, e asi las islas de Cabo Verde (...), e todas las islas que se fallarem o conquirierem de las islas de Canarias para baxo (...) finca a los dichos Rey (D. Afonso V) e Príncipe (futuro D. João II) de Portugal e sus reinos, tirando solamente las islas de Canaria (...)”.

Quando Colombo descobriu as Antilhas, emergiram problemas só ultrapassados em Tordesilhas, em documento constante de seis folhas de papel de prego, assinado pelos procuradores régios respectivos em 1494. Cumpriram-se rigorosamente as instruções de D. João II para que “se faça e assine polo dito mar oceano uma raia ou linha direita de pólo a pólo, a saber do pólo árctico ao pólo antárctico, que é de norte a sul. A qual raia ou linha se haja de dar e dê direita, como dito é, a trezentas e setenta léguas das ilhas do Cabo Verde pera a parte do ponente (...)”.

            - Certamente - asseverou João Miguel - o Príncipe Perfeito dispunha de conhecimentos especiais que o levaram a alimentar uma natural vocação atlântica, numa época em que os castelhanos, através de Fernando e Isabel, se voltavam mais para os problemas europeus e mediterrânicos, como a lenta expulsão dos mouros.

            - E assim se criaram as necessárias condições políticas para  o surgimento da imensa área territorial que havia de ser o Brasil.

            - Sem dúvida. Surpreendentemente, na época de dominação dos Filipes, porque era tudo castelhano, avançou-se mais para Ocidente, bem para lá da linha estabelecida em Tordesilhas. Esse avanço foi, depois da retoma da independência, reconhecido pelos espanhóis, por via do Tratado de Madrid, em 1750.

            - Donde se conclui que o Brasil, territorialmente, acabou por beneficiar do domínio filipino.

- É verdade. Mas, voltando ao fio da meada, que conhecimentos seriam os do nosso Rei, propiciadores do exercício da referida vocação, velha do tempo do Infante D. Henrique? - interrogou-se Maria do Mar. Este já obtivera uma carta de privilégio reconhecido pelo papa, relativamente à exploração das terras e dos mares a sul do cabo Bojador. Algo colocava Portugal em condições favoráveis ao avanço dos descobrimentos e não era certamente apenas a sua situação geográfica à beira do mar aberto.

- Penso - disse João Miguel -  que a fímbria deste mistério pode estar ligada à Ordem dos Templários, aos seus conhecimentos náuticos, às suas especiais ligações aos portugueses e a possíveis experiências de navegação, secretas algumas, esquecidas ou ignoradas pela História, outras.

- Deves ter razão. Por que terá D. Dinis, na sequência da extinção papal daquela Ordem de Cavalaria, mantido intacta a sua estrutura e bens, limitando-se, diplomaticamente, a rotulá-la com a designação de Ordem de Cristo? - interrogou-se Maria do Mar. E acaba por ser o símbolo desta Ordem, a Cruz de Cristo, a acompanhar, depois, as caravelas e naus, decorando o bojo das velas ...

- A verdadeira razão da extinção que mencionaste, não se relaciona com eventual simpatia da Ordem por Portugal?

- A verdadeira razão? Não foi a prática de homossexualidade?

- Não. Tal prática não era novidade nenhuma também noutras Ordens e instituições congéneres.

- Divergências pontuais com a hierarquia eclesiástica?

- Não. Os Hospitalários também as tiveram e não sofreram declarações de extinção.

- A fantástica riqueza da Ordem?

- Não, directamente. Por que haveria a Igreja de reagir contra essa situação, se fosse a suprema beneficiária dela? Indirectamente, sim.

- Então?

- Então o assunto é interessante e complexo. Havemos de voltar a ele. Agora apetece-me dormir.

 

(...)

 

NA TERRA DOS FARAÓS

 

 

 

Em Abril, novamente o aeroporto da Portela foi ponto de encontro para um grupo, agora com características diferentes. Pouco tinha já a ver com a envolvência académica, irreverente e jocosa. Era, pois, na gíria coimbrã, um grupo inteiramente futrica. Nem por isso, porém, estava ausente a boa disposição solidária.

Cedo se constituiu uma família ligada por certo espírito de aventura e, sobretudo, por um interesse insaciável de alargamento cultural. Estabeleceu-se, assim, utilizando linguagem informática, uma espécie de ilimitado input na ânsia de, humilde e permanentemente, se melhorar o output.

Na pista, aguardava o grupo um enorme Jumbo de uma Companhia de bandeira egípcia. O deus Hórus pintado atrás, no leme de direcção, era o primeiro indício da grande civilização antiga do país a visitar.

Os hercúleos motores lançaram o colosso voador, com os seus dois andares, em corrida desabrida ao longo da pista, enquanto alguns passageiros davam sinais da tal “miúfa aguda” ou “síndroma do cagaço”. Em breve, porém, qual açor descomunal, já o gigante dos ares estabilizava em direcção ao Oriente. A velocidade, insaciável devoradora de espaço, poupava avaramente tempo.

- Maria do Mar, acabamos de deixar a terra espanhola para trás e, mais uma vez, sobrevoamos o elemento integrante do teu nome.

Fingiu-se, subitamente, apreensivo:

- A propósito do teu nome, nunca to disse, mas, na verdade, há um pormenor importante...

- Que pormenor?

- Falei em pormenor, mas, na realidade, trata-se de uma questão, para mim, essencial.

- Estou cheia de curiosidade!

- Eu pensava que eras minha, mas, afinal, és... do mar!

            Ela riu-se, chegou-se bem a ele, deu-lhe ligeira mordida no lóbulo da orelha e segredou-
-lhe:

- O nome Maria pode ser do mar, mas tudo o mais da Maria é teu!

João Miguel encostou a sua cabeça à dela e assim permaneceram por um largo tempo, sentindo o prazer da troca de calores, a misturarem-se saborosamente.

Em baixo, as ondas corriam em linhas brancas paralelas, umas atrás das outras, sinal de brisa forte.

- Lá está - observou ela - a vastidão do Mare Nostrum (deles... Romanos). Mare Nostrum, curiosamente transmudado em epitáfio de uma grandeza julgada inabalável, como todas as grandezas imperiais.

- É verdade! Todos os grandes impérios tiveram a sua ascensão e queda: os orientais, o egípcio, o grego, o romano, mais recentemente o soviético. E sempre caem por dentro, autodesmoronando-se por via de insanáveis contradições internas. Está na calha o próximo, bem lá para os lados do sol-poente.

- Obviamente. É uma questão de tempo...

Enquanto se sobrevoava, sucessivamente, a Sardenha, a Cecília, Malta, Creta, para trás, à direita, foram ficando a Argélia, a Tunísia, a Líbia; à esquerda, a França, a Itália, a Grécia, a Turquia. Quantas sugestões, quantas vivências de uma humanidade passada, elos de ligação e de sustentação da actual...

Em breve surge o famoso delta do imenso rio Nilo com Alexandria não muito longe da mais ocidental da sua meia dúzia de fozes.

- Alexandria! - exclamou Maria do Mar, enquanto remexia nos arcanos da memória. É impossível, neste momento, não pensar no jovem Alexandre.

-E não só pela sua cultura pessoal, ou não tivesse ele sido aluno de Aristóteles, com quem aprendeu ciências naturais, medicina e eloquência; nem só pelo seu génio guerreiro que o lançou para a conquista sem limites, como se quisesse dominar o mundo, como um Napoleão Bonaparte dos tempos antigos.

- Qual o aspecto mais interessante desse endiabrado rapaz que só tinha trinta e três anos quando morreu, por doença?

- Olha, Maria do Mar, penso poder considerar-se o facto de ter apreendido o essencial da extraordinária cultura grega e de a alargar aos países sucessivamente conquistados, sem deixar de respeitar as formas locais de vivência.

- Aliás, é dessa mistura que nasce o helenismo, a cultura de Hélen que os gregos consideravam seu primitivo ascendente.

- É isso. O principal centro dessa nova cultura foi precisamente esta cidade de Alexandre: Alexandria.

- Aqui, o culto do saber e da inteligência honrou a ascendência intelectual grega, sem perda, como ficou dito, do respeito pelo essencial da maneira de viver egípcia. Por isso, o povo aceitou, de boa mente, aquele estrangeiro como seu imperador.

- E assim, Maria do Mar, se fundou, naturalmente, uma biblioteca das maiores e mais ricas do mundo. Sabes que havia emissários deambulando por diversos países em busca de livros, num permanente enriquecimento do seu espólio?

- Espantoso!

- Mais: quem passasse pela cidade com livros era obrigado a entregá-lo para se fazer uma cópia! Entretanto, Alexandre desapareceu e vieram os conquistadores romanos. Também eles respeitaram alguns aspectos da cultura egípcia, deixando intactos os templos tradicionais. No de Fhilæ, perto de Assuão, há uma parte construída pelos romanos!

- Mas essa situação não durou para sempre e, provavelmente, muitos romanos influentes não saberiam lá muito bem para que servia tanta livralhada...

- Se sabiam, não a apreciaram devidamente. Na época de Júlio César, houve quem descobrisse serem os rolos de papiro, os livros de então, um excelente combustível para aquecer água nas termas...

- Espantosa insensatez e crassa ignorância!

- Decerto! Entretanto, surgiu no mundo romano uma nova religião com origem aqui bem perto, na Jordânia, em Israel e até nestas terras: lembremo-nos da fuga da Sagrada Família para cá. Ora, rapidamente e com força indomável, tendeu a espalhar-se por aquele mundo.

- Inclusivamente por todo o  Egipto.

- Exacto, também por cá. Essa nova religião tinha e tem um livro sagrado.

- A Bíblia.

- Sim, a Bíblia. Conforme já o referimos, ela continha, segundo se acreditava, ou se dizia acreditar, mas se obrigava implacavelmente a aceitar, toda a verdadeira sabedoria, pois fôra ditada por Deus para conhecimento e uso dos homens.

- Portanto, João Miguel, tudo o mais, antes pensado e escrito, era supérfluo ou mesmo nocivo.

- Naturalmente. Não se estranha, assim, que quase toda aquela riqueza, património da humanidade, sem protecção de quem quer que fosse, votada a um hostil e completo abandono, tivesse sido consumida pela labareda do incêndio intencional da insensatez, num fantástico luzeiro de trevas ateado pelo zelo apostólico do bispo Teófilo, cerca do ano 390!

- Luzeiro de... trevas? É isso mesmo! Mas ainda muita coisa escapou, nessa altura.

- Só que, mais tarde, a onda islâmica varreu o mesmo território. Sob o signo de Omar, reacendeu-se o brasido nos restos da grande biblioteca e o respectivo luzeiro, provavelmente potenciador da estagnação filosófica medieval. Salvou-se o que muitos homens sábios, por iniciativa pessoal, conseguiram pôr a bom recato.

- E seriam esses salvados a ajudar a redescoberta de Aristóteles e de outros clássicos, através de traduções de Averróis e de Avincena, germe do desencadear do Renascimento.

- É verdade. Não obstante as acendradas tentativas de entraves, como claramente resulta das leitura do conhecido livro de Umberto Ecco, “Em Nome da Rosa”. Entraves só atenuados quando S. Tomás de Aquino ginasticou doutrinalmente para conciliar o aristotelismo com a doutrina vigente.

Por uns momentos mantiveram-se pensativos, impressionados pela evocação dos acontecimentos.

João Miguel, emergindo da meditação, referiu com solenidade:

- Por vezes, com poderosa ironia, a razão acaba por se impor, deixando para trás a força conjuntural da irracionalidade: o Egipto e o Mundo garantem o renascimento glorioso de nova biblioteca, no mesmo local!

- E com a conversa quase chegávamos ao Cairo sem dar por isso - disse Maria do Mar, espreitando pela janela.

Efectivamente, a grande Capital, a maior do continente africano, estava ali a nossos pés e o avião mergulhou suavemente em busca da pista de aterragem.

- Finalmente estamos no seio do Islão.

- Não há dúvida, Maria do Mar. A prová-lo aí estão as cúpulas das mesquitas e os típicos crescentes. Repara na quantidade de minaretes! Ou não fosse a cidade dos mil minaretes! Vamos, com certeza, ouvir os recitadores apelarem à oração, cinco vezes por dia.

Não se enganou. Em breve, aos seus ouvidos chegou o som forte de uma das preces entoada por voz bem treinada, ou não acontecesse nas universidades do Cairo a melhor preparação de recitadores corânicos. As palavras tombaram solenemente a encher a Cidade, impressionando a imaginável reacção pavloviana dos milhares de ouvintes crentes. Um pouco como o toque das trindades nas aldeias portuguesas, à tardinha, e das ave-marias, ao alvorecer, ainda em meados do Séc. XX.

- Agora - ponderou João Miguel - já não precisam de subir ao topo das escadas para invocar Alá, pois a sua voz gravada alcança o mesmo efeito, até com mais eficácia, por mais audível: colocar os devotos em posição suplicante, virados para Meca.

- No entanto, falta-lhe a poesia da intervenção pessoal, sem altifalantes agressivos, modalidade que tanto encantava Frederico II, imperador da Alemanha e rei da Sicília, no tempo das cruzadas - comentou Maria do Mar. Segundo ele, valia a pena ir à Terra Santa só para, nas noites cálidas, escutar a voz dos muezins, anunciando, do alto das almenaras, a hora da oração.

- Esse foi, obviamente, um cruzado especial.

- Tinha de ser, João Miguel! Com o seu espírito de poeta, necessariamente alcançava uma percepção diferente no relacionamento com esta gente de cultura marcada pelo islamismo.

- Aliás, ele conhecia profundamente esta cultura e respeitava-a, procurando fomentar amizades.

- Claro, desse modo fugia à filosofia guerreira das cruzadas, segundo a qual, o islamita, o mouro, o infiel tinha de ser fisicamente eliminado como intolerável impedimento ou concorrente afrontamento às omnipresentes intenções ecuménicas e hegemónicas de Roma. Bons eram aqueles que passavam tudo a fio de espada, mulheres, crianças, velhos, como o batalhador Ricardo Coração de Leão.

- A política negocial, de compreensão e de compromisso, Maria do Mar, não poderia ser benquista a um papa atento e, na verdade, Gregório IX apressou-se a excomungar Frederico, acabando por ser deposto por Inocêncio IV, no Concílio de Lyon de 1245!

- Não obstante, ironicamente, ele conseguiu, pelo Tratado de Jafa, no Séc. XIII, a entrega, pelo sultão Malek-Kamel, não só de Jerusalém, como de Belém, Nazaré e de outras localidades. Tudo isto sem derramar uma gota de sangue!

- Efectivamente, de novo a ironia da situação chega a produzir certa risibilidade.

A caminho do hotel deparou-se com trânsito intenso de carros, na maioria velhos de mais de vinte anos, numa confusão incompreensível para quem está habituado a obedecer aos sinais de trânsito. Com efeito, estes existem, mas todos os ignoram ostensivamente, mesmo à vista da polícia que, placidamente, assiste e admite. Os peões serpenteiam por entre os carros, fugindo pelos breves intervalos que se vão formando. A desordem, no entanto, autodisciplina-
-se e tudo vai funcionando.

- Maria do Mar, aí temos o Sonesta Hotel, de cinco estrelas!

A entrada, devidamente controlada, até com detectores de metais, incutiu uma confortável sensação de segurança, o que não era irrelevante num Médio Oriente em ebulição permanente. Soube bem descansar um pouco numa suite luxuosamente equipada.

- Todo este conforto moderno não é, com certeza, para uso do vulgar cidadão de um país do terceiro mundo!

O egípcio comum cairota, de feições regulares, tez escura, magro, veste geralmente à ocidental. Ali, raramente se vê o turbante e a espécie de túnica talar, larga e cinzenta, sem botões, vestida pela cabeça, a cobrir completamente o corpo, comuns nos campos. Obviamente, não é este tipo de cidadão que frequenta tal hotel.

- Repara, João Miguel, no tamanho da nossa cama! E com três travesseiras!

- Facilmente cabe mais uma! E estou eu aqui apenas com uma mulher...

- O quê?! - observou Maria do Mar, fingindo-se agastada.

João Miguel tivera o cuidado de obter um exemplar do Corão, que foi lendo numa tentativa de melhor compreensão daquela gente. Ficou surpreendido com os pontos de contacto e de similitude com a Bíblia, havendo passagens que com ela se confundem. É assim, quando se fala de Nabi Iça (Cristo), filho de Maria e de um espírito precedente dele. Só que, segundo o Corão, foi um profeta falhado, ao contrário de Maomé em quem se deve crer; assim também, quando se refere a criação do homem e da mulher; igualmente, quando se menciona a parusia (fim do mundo) etc., etc.

Continuou, em tom divertido:

- Mas é evidente, minha Cara, eu ter a lei pelo meu lado. Repara nos dizeres do capítulo IV n.º 3 do Corão: “... casai-vos com as que vos agradarem, duas, três, ou até quatro. Se temeis não ser equitativos, casai-vos só com uma, de acordo com o que está ao vosso alcance.”

Enlaçou a companheira pela cintura, apertou-a, com enorme ternura, contra si, enquanto da sua boca saía o contrário do sentimento a querer exprimir:

- Como vês, posso tomar mais três mulheres... Mas consola-te: serás sempre a primeira esposa.

- Oh, shocram, shocram (obrigada, obrigada)! Estou muito sensibilizada... Ah, meu grande maroto!

Ele riu-se, enquanto no seu íntimo, sabia estar ali, naquela pessoa inalienável a sua razão de ser, sobretudo a força e a dignidade da coerência humana sempre buscada.

(...)


(*)José Pereira da Graça, 1934, escritor português, Mora actualmente em Vila Nova de Gaia.


Índice de Versiones 56

Página principal de Versiones