versiones, versiones y versiones...renovar la aventura de compartir la vida con textos, imágenes y sonidosDirector, editor y operador: Diego Martínez Lora    Número 56 - Junho - Julho 2004


Entrevista a José Pereira da Graça(*)

(A propósito da publicação do seu livro Maria do Mar - Viagens & Mitos pela Editorial 100)


DML: Quando é mais justo, quando actua como juiz ou como escritor?

JPdG: O sentido de justiça é sempre o mesmo.

DML: Quando se sente mais confortável como cronista-historiador ou como ficcionista?

JPdG: O meu ideal é a ficção a partir de elementos históricos, tipo "Os 'Cruzados' da Serra".

DML: De que forma a escrita compensa a actividade nos tribunais?

JPdG: A actividade nos tribunais é absorvente e especializada. Por isso, por um lado, é susceptível de criar saturação e cansaço; por outro, pode ser humanamente redutora. Assim, a escrita, a arte em geral, permite a fuga ao cansaço e a limitações.

DML: Se tiver que ser julgado como escritor como gostaria de ser condenado?

JPdG: Injustamente.

DML: Que autores portugueses admira? De que forma influem na sua escrita?

JPdG: Aprecio os autores por épocas, procurando adivinhar as condicionantes e os estímulos seus contemporâneos. Desde os trovadores, passando por Gil Vicente, António Ferreira, Camões, pelos setecentistas, aos românticos e realistas, abundam exemplos de boa escrita. Marcaram-me muito Júlio Dinis e Camilo com as suas ligações à ruralidade. Também Aquilino onde bebi alguns termos interessantes como "avonde".

DML: Entre o violino e a “pena” com qual consegue um voo mais prazenteiro?

JPdG: O violino talvez seja mais prazenteiro, porque mais amadorista ainda do que a escrita. Esta, provavelmente, mais empenhada, por mais interventiva.

DML: As duas personalidades que se manifestam uma na escrita e outra na oralidade, extroversão e introversão pesam igual no balanço da sua vida?

JPdG: Uma é complementar da outra. Note-se que a introversão da oralidade não é absoluta: depende bastante do interlocutor. Aliás, a prudência profissional acentuou a oportunidade do "calar".

DML: Que significou Labirintos no seu percurso literário?

JPdG: Os "Labirintos" foram uma incursão, uma forma de abordagem dos labirintos da personalidade humana.

DML: Os “Cruzados” da Serra foi a sua cruzada autobiográfica? Como desligar a realidade da ficção?

JPdG: Os "Cruzados" contêm um facto rigorosamente histórico (um homicídio político). O resto é ficção subordinada ao propósito de recriação social na época (1925) e no local (Beira-Alta). Nesta perspectiva, realidade e ficção confundem-se. Há um ligeiro toque autobiográfico no comportamento de um miúdo.

DML: Em Maria do Mar você junta as duas tendências, a de cronista e a de narrador de ficção.

JPdG: Efectivamente, a ficção surge no romancismo intercalar das crónicas.

DML: O rigor formal que teve com a Maria do Mar lhe mudou a forma de conceber a literatura?

JPdG: Não. Apenas mais cuidado em evitar o desnecessário ou redundante.

DML: O seu vocabulário é muito rico, e há que amar muito a língua portuguesa para lhe dedicar os cuidados que você tem. Pensa que escrever como você é cair no arcaísmo ou ressuscitar uma língua que morre mais rapidamente do que pensávamos na simplificação e na inovação violenta dos termos vindos da tecnologia?

JPdG: Escrever como escrevo é uma forma de procurar evitar ambiguidades e, portanto, reduzir a possibilidade de erros na transmissão de pensamento. Há, depois, a musicalidade de algumas palavras e o rigor do seu significado. O modernismo tecnológico tem força para se impor, mas, mesmo aí, a qualidade chegará um dia. Até lá delicio-me com o português que temos.

DML: No livro que está a escrever nestes momentos, o narrador está mais libertado de considerações para com um público leitor? Será sempre um relato controlado como um Deus criador? Ou será uma consciência libre de escrúpulos y de luz renascentista? Apareceram os verdadeiros monstros que  dizem todos os escritores possuir..

JPdG: O trabalho que preparo, como outros já existentes, lutam com fantasmas e monstros psicológicos externos. Claro, na criação, há sempre a noção da presença de limitações humanas que são, isso sim, um monstro interno. Apenas se espera que a mensagem literária alcance o leitor num espírito renascentista em permanente evolução, caldeado pelo iluminismo oitocentista e pelas luzes contemporâneas.

DML: Para quê público escreve?

JPdG: Creio que escrevo, sobretudo, para aqueles que procuram medir "correctamente a realidade das ilusões".

DML: Porquê a 6ª Sinfonia de Beethoven é a sua música preferida?

JPdG: A 6ª é um cântico à ruralidade e à Natureza, de que todos somos átomos integrantes. Daí a consonância, a identificação, mas não necessariamente a definitiva preferência.

DML: Como bom leitor qual considera o seu grande defeito como escritor?

JPdG: Gostaria de um pouco mais de ousadia ficcional. Talvez respeito em demasia pela realidade seja um pouco redutor ou obstativo. 

DML: Entre o trabalho diário, disciplinado e constante ou a inspiração súbita e irregular, a sua escrita é cada vez mais como um ofício ou como uma arte de momentos?

 JPdG: A necessidade de escrever é imanente na minha natureza. A sua expressão é que precisa de um momento inicial endoginamente propício. Um ofício nunca foi nem será.

DML: Na realidade esse título: Os “cruzados”  ...., é polivalente, porque cruzados também podiam ser os que lutavam para poder sobreviver no campo e os que defendiam a laicidade na política e nas relações sociais.  Que há de autobiográfico em concreto nesse romance para além do ambiente rural e aldeão?

JPdG: As observações que faz, as perguntas que formula já não me surpreendem porque já o vou conhecendo bem. Sempre direi que é preciso argúcia para descobrir dois sentidos na palavra "Cruzados". De facto assim é, e a sugestão está expressa nas aspas que destacam a palavra, mas nem todos captam tal sugestão. Que eu saiba é mesmo o primeiro a fazê-lo!

    O que há de autobiográfico, em concreto?

    Na personagem Zé Gomes, na sua vivência juvenil, feliz e desabrochante, transportada para trás, no tempo, de forma a adequar-se à época do enredo romanesco. Tão só.

DML: Se se tivesse que analisar temáticamente surgiriam tantos temas, o amor, a morte, a violência, a sexualidade, o erotismo, a ruralidade, a religião, a política, geografia animal e vegetal, relações sócio-económicas, costumes, tradição – modernismo, etc. Que temas ou aspectos pensa que lhe faltou tratar para ser um romance totalista? Se o tivesse que escrever novamente o que eliminava? E o que mudava ou aumentava?

JPdG: Os "Cruzados" procuram recriar a forma de viver no período imediatamente precedente ao crime (histórico) que ocorre quase no final do livro. A vida é abrangente, neste sentido totalista. Tudo o que pareceu relevante veio naturalmente à colação. Se tivesse que fazer uma rescrita, não vejo que tivesse de acrescentar o que quer que fosse.

    Eliminaria, talvez, algumas notas que, sendo informativas, não se encaixam, no entanto, facilmente na fluência da linha narratória; transformaria certos diálogos que soam algo artificiosos ou ingénuos, em narração; tornaria o discurso mais ágil num ponto ou noutro; talvez alterasse o destino da Deolinda (que acabou louca num convento) e do Miguel Pedrosa (morto emigrado em Angola). Tramaria um rapto libertador de modo a que a capacidade de iniciativa e a vontade de viver vencessem a desgraça.

DML: Como foi acolhido este romance pela crítica ou pelos seus leitores? Que resposta obteve?

JPdG: A edição foi minha. Fiz apenas uma proposta de edição a uma editora do Porto que considerou o texto interessante, mas que pela sua dimensão não se antevia comercialmente viável.

    O romance apareceu discretamente, na medida em que nada fiz para o publicitar. Alguma publicidade que alcançou foi através de amigos. Teve entusiasmado acolhimento na minha terra. Houve algumas críticas em jornais (positivas), considerando-se o texto de interesse actual, não obstante a acção decorrer em 1925. Conservo as que chegaram ao meu conhecimento. Houve referências muito interessantes por parte de leitores. Um deles, agora já falecido, tinha acabado de ler o "Evangelho..." de Saramago e achou o meu romance mais interessante, afirmando que o autor "era um Júlio Dinis erudito". Um senhora brasileira, Valdelice Alves Leite, escritora que conheci no Porto, confessadamente católica, escreveu-me afirmando, entre outras coisas:

    ..."É objectivo e transparente, indo diretamente ao essencial. Suas expressões são profundas e ardentes, sumamente reais, às vezes o sangue nos flui à pele, sem entretanto melindrar, ferir susceptibilidades, pois os atos são explicitados com uma subtileza encantadora".

DML: Como influi o influiu a Igreja Católica na vida do escritor Pereira da Graça?

  JPdG:  Cresci, até aos doze anos, na ambiência tradicional e normal, para a época, de religiosidade provinciana católica, plena de missas, confissões, terços, ladainhas, procissões.

    A tendência para procurar a razão de ser de tudo (cedo aprendi a questionar o próprio dogma) levou-me a ensaiar a perspectiva história da instituição Igreja Católica e a sua influência social determinante. A busta alargou-se a outras religiões (judaica, islâmica, protestante, xintoísta) ou filosofias de vida (budismo, taoísmo, confucionismo, etc).

    A especificidade em relação à Igreja Católica resultou do seu imediatismo cultural e envolvência sufocante.

    Influência na escrita? Tentativas de libertação.

DML: A natureza aparece sempre como uma presença meticulosamente descrita, nunca quadros mortos, detalhes de vida natural que faz as paisagens  tridimensionais e em processo, em movimento, como fotos vivas. A sensibilidade do autor frente à paisagem rural invade grande parte do seu trabalho como escritor. Pensa que o homem urbano ou as camadas novas de jovens perderam essa capacidade para perceber o mundo que nos rodeia.?

  JPdG: O homem urbano e os jovens não terão perdido a capacidade para perceber o mundo (natural) que nos rodeia.

    O que lhes faltará é a oportunidade de o perceber. 

    Podem até ficar extasiados perante a beleza de um poente ou o rumorejar de um ribeiro, mas falta-lhes a identificação com a Natureza que lhes permita percebê-la e fruí-la devidamente. Perante um tufo fresco de verdura são capazes de passar a mão ou de se deitarem sobre ele, sem saber que se trata de urtigas. O que resta são os consequentes desconforto e insuportável comichão. Ou, então, sentam-se sob a sombra acolhedora de um sobreiro para ingerir apetitosa merenda, quando descobrem que as formigas se apossaram dos acepipes e até sobem por eles acima. Fica o desagrado dessa sensação. Ou sofrem a picado de um lacrau ou, pior, de uma víbora.

    Tudo isto por não se viver na ou com a Natureza e os seus segredos.

DML: Você dá muito valor ao corpo humano, a anatomia da mulher. Os seios ocupam um lugar insistente na descrição da sensualidade nas diversas cenas da sua escrita. Gostaria que falasse um bocado do seu diálogo com o corpo humano y de que forma esse espírito tinge a sua escrita?

JPdG: Admito que seja notório, além do mais, o sentido estético do corpo humano, mormente da mulher. O que me surpreende é a prevalência de referências aos seios. Não me tinha dado conta.


(*)José Pereira da Graça, 1934, escritor português, Mora actualmente em Vila Nova de Gaia.


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