versiones, versiones y versiones...Director, editor y operador: Diego Martínez Lora
Márcia Gonçalves(*)
Auto-retrato e outros poemas
Menina de olhos castanhos. Esverdeados – dizem alguns.
Vestida de luto. Cabelos entrecortados em lágrimas.
Tentando estreitar as amarras do rosto, laços de puro linho
despidos por gestos ensanguentados de silêncio.
Um enorme ímpeto.
Num cansaço gritante, fixando o espelho,
sentindo a alma perder-se numa calma dilacerante,
sentindo a respiração da boca, intensamente, cerrada.
Apenas olhando o espelho, de pulsos pesados,
persuadindo as mãos a não condenarem o corpo.
O tempo, as almas, tornam-se tão cedo inacessíveis.
Num gesto violento tento vencer a dureza das barreiras talhadas a fel,
mas as memórias revelam-se cada vez mais sólidas nas minhas mãos.
Por que é tudo tão cedo inacessível?
Poderia confundir-me nos sonhos das montanhas,
nos troncos envelhecidos das árvores, nas folhas amarelas, ou vermelhas. Em qualquer canto
sentiria salpicos negros de rejeição na garganta.
Tudo por não conhecer a face última das almas, ou dos olhos intrigantes.
Creio, vagamente, no horizonte anónimo das coisas,
no cheiro misterioso que me corre nas veias,
mas a limitação formou o carácter de cada um e já nada há para o mudar.
Sinto o silêncio e a ira mesclados numa imperfeita moldura de ferro.
Sobraram apenas as sombras dos parques antigos
e esta certeza de que tudo é inacessível, demasiadamente, cedo.
Queria uma noite em branco.
Uma noite que pudesse ser eu a moldar,
a colorir, a decifrar.
Uma noite em forma de poema,
que eu pudesse abraçar com as minhas palavras,
com esta ânsia de escrever, de me arredondar
em orientes camuflados no papel.
Sim, era apenas uma noite que eu queria.
Uma noite cercada de mim – apenas de mim.
Onde pudesse estar a sós com o silêncio,
fazendo amor com os seus beijos. Um amor tão puro,
tão profundo, que jamais fosse possível
convertê-lo em poesia.
(*)Márcia Gonçalves, Vale de Cambra, 1986. Actualmente reside em Lisboa. Publicou Palavras ao vento, Editorial 100, 2004)