Um supereu para a
sociedade de consumo : Sobre a
instrumentalização de fantasmas como modo de socialização Era como se alguém estive atrás de mim com um
porrete, gritando: “Você precisa estar feliz! Você precisa estar feliz!” Schostacovich A própria insatifação tornou-se mercadoriaGuy Debord Um dos principais conceitos criados por Freud
para a análise de fatos sociais foi o de supereu. Ao tentar explicar, através
do mesmo dispositivo, a gênese da consciência moral, do sentimento de culpa,
dos ideais sociais do eu e da internalização da lei simbólica, Freud deparou-se
com um processo no qual socialização e repressão convergiam em larga medida.
Hoje, as páginas do Mal estar na
civilização que tratam de tal imbricação são arqui-conhecidas. “Toda
cultura deve necessariamente se edificar sobre a repressão e a renúncia
pulsional”[1] é uma frase que ressoou como programa crítico
durante todo o século XX, vide, por exemplo, a promessa utópica de
reconciliação entre exigências pulsionais e formações sociais que animou Eros
e civilização, de Herbert Marcuse.
A grosso modo, a frase de Freud indicava os resultados sociais de uma
relação ambivalente que se dá inicialmente no interior da família burguesa;
relação marcada pela sobreposição entre rivalidade e identificação que aparece
de maneira mais visível no conflito entre o filho e aquele que sustenta a lei
paterna. Para ser reconhecido como sujeito e como objeto de amor no interior da
esfera familiar, faz-se necessário que o sujeito se identifique exatamente com
aquele que sustenta uma lei repressora em relação às exigências pulsionais. O
resultado é a internalização psíquica de uma ”instância moral de observação”,
no caso, o supereu resultante desta identificação parental. Isto faria com que
toda afirmação do gozo ligado à satisfação pulsional provocasse,
necessariamente, um sentimento de culpa advindo da pressão sádica do supereu
sobre o eu. Sentimento de culpa que não deixa de provocar, como benefício
secundário, um modo neurótico de gozo. Sabemos que a psicanálise freudiana
normalmente opera com uma perspectiva unívoca na compreensão da multiplicidade
das ordens simbólicas. Há, por exemplo, a pressuposição de uma espécie de
princípio de similaridade estrutural entre a autoridade familiar e a autoridade
que suporta outros vínculo sociais, como os vínculos religiosos ou políticos[2].
Tal similaridade entre esferas aparentemente autônomas de valores (família,
religião, Estado) permite a Freud insistir que aquele que suporta a função
paterna não é apenas representante da lei da família, mas de uma Lei que
determina o princípio geral de estruturação do universo simbólico. Nào se trata
de tentar derivar as ordens simbólicas a partir do núcleo familiar, mas de
insistir no fato de que problemas de socialização do desejo no interior do
primeiro campo de experiências do sujeito, ou seja, o núcleo familiar, trazem
necessariamente tensões de socialização em esferas mais amplas. Isto abre o
caminho para Freud afirmar que o sentimento de culpa: “seria o mais importante
problema no desenvolvimento da civilização”[3],
e não simplesmente no desenvolvimento da família burguesa. De
fato, tudo isto é praticamente um lugar comum atualmente. Mas algumas
modificações substanciais ocorreram em certos processos de socialização e elas
fazem com que o problema do supereu ganhe hoje novas configurações. Este ponto
não deve nos estranhar pois, se o supereu tem sua gênese exatamente a partir
dos processos de socialização, se ele é : “uma manifestação individual ligada
às condições sociais do edipismo”[4],
então ele necessariamente se modificará na medida em que tais processos se
reconfigurarem. Fato que, como veremos, Jacques Lacan e a Escola de Frankfurt
perceberam claramente ao pensar as incidências clínicas de uma modificação
histórica maior bem definida por críticos conservadores da modernidade : o
advento de uma espécie de “socidade não-repressiva” vinculada à universalização
das práticas de consumo. Para entender o significado e alcance de tais
elaborações, valeria a pena darmos um passo para trás. Freud, Weber e a modernização
bloqueada
Muito há ainda a se dizer, por exemplo, a respeito de certas
articulações possíveis entre Freud e Max Weber como teóricos da modernização,
dos processos de racionalização e suas conseqüências. Há uma teoria da
modernidade em Freud fundada, principalmente, na convergência entre processos
de modernização social e processos de maturação subjetiva. Ela não deixa de, a
seu modo, articular-se como pontos maiores do impacto subjetivo da modernização,
tal como ela é pensada por Weber. Para Freud, o processo de modernização deve
ser compreendido como repetição do desenvolvimento libidinal do sujeito.
Filogênese e ontogênese estão submetidas a mesma lógica evolutiva devido àquilo
que Freud chama de: “conservação [subjetiva] de traços mnésicos de heranças
arcáicas [socialmente vivenciadas]”[5].
Seguindo uma visão positivista nunca renegada, Freud compreende a vida social a
partir do desenvolvimento progressivo de três grandes visões do mundo (Weltanschauung)
: a animista, a religiosa e a científica[6].
Cada uma equivaleria, de uma maneira muito aproximativa, a momentos de
desenvolvimento subjetivo. A Weltanschauung animista
seria marcada pelo encantamento do mundo resultante da crença na onipotência de
um pensamento cuja capacidade cognitiva está vinculada às operações de analogia
e similitude. Freud não teme em falar de estruturas projetivas próprias ao
narcisismo para caracterizar a constituição de objetos neste campo
pretensamente marcado pela crença na onipotência do pensamento. Sabemos como
tal maneira de compreender o animismo através de uma sobreposição entre
pensamento “selvagem”, infantil e pré-lógico foi posteriormente amplamente
criticada por Lévi-Strauss[7]. Por sua vez, a religião se
desenvolveria a partir do momento em que o desamparo (Hilflosigkeit)
aparece enquanto consciência da desintegração da possibilidade de apreensão do
sentido como totalidade de relações. As operações analógicas próprias ao
animismo pressupunham a participação do homem no seio da natureza, modo
de participação que deve ser compreendido como figura de imanência de uma
experiência de sentido pensada como totalidade de relações disponíveis à
apreensão. Já as construções ético-religiosas de mundo se edificariam sobre uma
ruptura entre homem e natureza cuja manifestação fenomenológica se daria
através da figura do desamparo. Tais construções apareceriam pois como modos de
defesa contra tal desamparo sentido pelo sujeito ao se defrontar com a
irredutibilidade da contingência de sua posição existencial; posição que em
Freud está sempre ligada a uma certa antropologia da finitude através das
figuras da assunção da morte, da diferença sexual ou da contingência absoluta
do objeto do desejo[8]. Devido às experiências no interior
do núcleo familiar, e devido também ao fato do complexo de Édipo aparecer em
Freud desde o início como o dispositivo de socialização do desejo no interior
da cultura, a formação de tal sistema de defesa será pensada a partir dos
desdobramentos da estruturação do supereu, já que esta instância psíquica
encontra sua gênese no medo da perda do amor daquele capaz de livrar o sujeito
do desamparo[9]. A internalização da lei
paterna através do supereu é, para Freud, signo sempre legível de uma demanda
de amor, e saber-se objeto amado por um Outro (que é representante da Lei
simbólica) tem, para o sujeito, o valor da anulação de uma posição existencial
de pura contingência. Isto explicaria porque, para Freud, as representações da
divindade serão assim necessariamente portadoras de traços superegóicos. Dentro
deste quadro, a visão de mundo científica, esta no interior da qual a
psicanálise, aos olhos de Freud, se move, apareceria como o discurso
desencantado que deve dar lugar à defesa neurótica contra o desamparo promovido
pelas construções ético-religiosas[10].
Assim, o desencantamento provocado pelo discurso científico deve
necessariamente ser acompanhado da afirmação de uma antropologia da
finitude, na qual o sujeito reconhece sua pequenez (Kleinheit) e
submete-se à contingência da morte[11].
No entanto, a afirmação de tal antropologia significa a diminuição do
investimento libidinal no supereu e em suas figuras sociais. Pois a
afirmação da essencialidade do desamparo
aparece como protocolo de emancipação na medida em que ela limita a demanda de
amor por representações superegóicas. Isto leva Freud a afirmar que :
“chegou a hora de substituir os sucessos do recalcamento pelos resultados do
trabalho racional do espírito”[12]
, jà que “o progresso no trabalho científico realiza-se de maneira similar ao
progresso analítico”[13].
Ou seja, há um certo horizonte de reconciliação em Freud que não passa pela
adequaçào positiva entre exigências pulsionais e estrutura social, mas pela
afirmação do desamparo como protocolo de emancipação devido a abertura possível
a um pensamento da contingência. No
entanto, para Freud, a modernidade prometida pelo advento da visão de mundo
científica está bloqueada enquanto modernização sócio-cultural. Pois o desancantamento do mundo prometido pela
psicanálise (e pelo discurso científico) só poderá ocorrer a partir do momento
em que os vínculos sócio-culturais e os conflitos sociais não forem mais
regulados através da saída neurótica do complexo de Édipo na qual socialização
e repressão aparecem como processos convergentes devido a solidifação do
supereu como instância repressora. Enquanto isto não ocorre, a estrutura
psíquica do sujeito moderno o deixa vulnerável à incorporação sócio-cultural
através de figuras sociais do supereu, como àquelas que animam as crenças
religiosas, as lideranças carismáticas[14]
ou a ética do trabalho baseada na renúncia pulsional. Para Freud, tudo se passa
como se esferas sociais de valores obedecessem a ritmos distintos de
desenvolvimento. Se o discurso científico traz uma visão desencantada de mundo
clinicamente implementada pela psicanálise, visão na qual o campo de fenômenos
não se submete mais a concepções totalizantes de mundo, isto nào impede que as
esferas da reprodução material da vida sejam ainda “encantadas” devido à
constituição superegóica de figuras sociais de autoridade. No entanto, não deixa de ser
tentador lembrar como este supereu que articula uma consciência moral fundada
na repressão de monções pulsionais teve
uma função social preciosa no desenvolvimento do capitalismo como sociedade de produção. Isto nos permite
afirmar que a economia libidinal da sociedade de produção teria alimentado uma
instância psíquica como o supereu repressor, o que pode nos explicar certos
motores de sua permanência. Neste ponto, podemos nos voltar a Max Weber. Weber, ao insistir que a
racionalidade econômica dependia fundamentalmente da disposição dos sujeitos em
adotar certos tipos de conduta, lembrava que nunca haveria capitalismo sem a
internalização psíquica de uma ética protestante do trabalho e da convicção,
estranha ao cálculo utilitarista e cuja gênese deve ser procurada no
calvinismo. Ética esta que Weber encontrou no ethos protestante da acumulação de capital e do afastamento de todo
gozo espontâneo da vida. O trabalho que marcava o capitalismo como sociedade de
produção era um trabalho que não visava exatamente o gozo do serviço dos bens,
mas a acumulação obsessiva daqueles que: “não retiram nada de sua riqueza para
si mesmo, a não ser a sensação irracional de haver ‘cumprido’ devidamente a sua
tarefa”[15]. Weber chega a falar em uma “sanção
psicológica”[16] produzida pela pressão ética e
satisfeita através da realização de um trabalho como fim em si, ascético e
marcado pela renúncia ao gozo. O que o leva a insistir que : “O summum bonum desta ‘ética’, a obtenção
de mais e mais dinheiro, combinada com o estrito afastamento do todo gozo espontâneo da vida é, acima de
tudo, completamente destituída de qualquer caráter eudemonista ou mesmo
hedonista”[17]. A irracionalidade deste processo
de racionalização do trabalho, ao menos a partir de uma lógica eudemonista ou
hedonista, pode nos indicar seu caráter superegóico. Weber nos indica claramente vários
traços superegóicos desta Lei da ética protestante do trabalho: a transformação do Pai Celestial que
suportava a Lei no Novo Testamento em um Pai Severo superegóico: “ser
transcendental, além do alcance do entendimento humano”[18], um trabalho feito como vocação que é resposta
à voz do Outro (no caso, o chamado de Deus)[19], a culpabilização de todo prazer sensível
(rebaixamento do sensível que Freud compreendeu como figura da renúncia
pulsional) e a entificação obsessiva de um “auto-controle sereno” como ideal de
conduta[20]. Sendo assim, se a lei moral que
sustenta a disposição dos sujeitos em adotar certos tipos de conduta econômica
é uma figura do supereu[21],
então a economia libidinal do capitalismo como sociedade de produção seria
impensável sem o desenvolvimento de uma civilização neurótica que só poderia
pensar seus processos de socialização através da instrumentalização do
sentimento de culpa. Neste sentido, uma certa configuraçào da dinâmica do
trabalho no capitalismo impediria a realização dos processos de modernização
tais como Freud os pensou. E Freud não teme em falar neste caso de “patologias
das comunidades culturais”[22]
(Pathologie der kulturellen Gemeinschaften). O que não significa que
todos os sujeito de uma determinada sociedade serão neuróticos, mas que os
ideais sócio-culturais responsáveis por processos de socialização baseados em
identificações tendem a produzir estruturas libidinais neuróticas. Da produção ao consumo No entanto, este diagnóstico social
de bloqueio dos processos de modernização devido a uma socialização construida
a partir da repressão pulsional
superegóica foi paulatinamente revisto pela posteridade dos leitores de
Freud. Muito já se falou, por exemplo, a respeito das incidências do declínio
da imago paterna na reconfiguração dos processos de socialização e sua
posterior consequências na formação de ideais sociais repressivos. Mas eu
gostaria aqui de insistir em um outro ponto. Se é fato que a incidência social
da figura do supereu estaria vinculada (embora não se trate necessariamente de
uma relação de causalidade) a uma certa “dinâmica libidinal” da sociedade de
produção através da entificação da ética do trabalho, então devemos pensar as
consequências advindas do esgotamento da sociedade
de produção, ao menos tal
como ela aparecia no início do século
para Freud e Weber. Podemos seguir aqui aqueles que
insistem na temática do declínio da sociedade do trabalho e da
obsolescência do paradigma da produção[23]. Assim, ao invés da sociedade da
produção, devemos compreender a contemporaneidade e seus traços a partir da
temática da sociedade do consumo, no sentido de que problemas vinculados
ao consumo acabam por direcionar todas as formas de interação social e de
desenvolvimento subjetivo, assim como é o incentivo ao consumo que aparece como
problema econômico central. Lembremos que, devido ao
desenvolvimento tecnológico exponencial e ao aumento da produtividade, os
sujeitos precisam, cada vez menos, estar envolvidos diretamente nos processos
de produção. Mesmo na esfera do trabalho, modificações estruturais ocorreram.
“Desde os anos 40”, nos lembra Clauss Offe “é recorrente a hipótese genérica de
que, a partir de um certo grau de industrialização, a tendência de
desenvolvimento da sociedade industrial se alteraria no sentido da expansão do
setor terciário, e não mais do industrial”[24].
Tal crescimento do setor terciário indica, entre outras coisas, que boa parte
dos novos empregos estão fundamentalmente envolvidos em processos de ampliação
do consumo, de manuseio da retórica do consumo (vendas, publicidade, marketing,
design, administração) ou ainda de manutenção da produção em sua forma social
(saúde, educação, segurança). Se pensarmos principalmente no primeiro grupo,
veremos que no interior mesmo da esfera de trabalho, os sujeitos deparam-se com
imperativos conflitantes, pois seu trabalho visa a disponibilização de serviços
que não se submetem à reprodução da ética do trabalho. Compreenderemos melhor este ponto se
lembrarmos que a mudança de paradigma, da sociedade industrial da produção para
a sociedade pós-industrial do consumo, traz uma série de conseqüências
fundamentais, a começar pelo fato de que os modos de alienação necessários para
entrarmos no mundo do trabalho não são totalmente simétricos aos modos de
alienação que fazem parte do mundo do consumo. De uma maneira esquemática,
podemos afirmar que o mundo capitalista do trabalho está vinculado a ética do
ascetismo e da acumulação. O mundo do consumo pede, por sua vez, uma ética do direito ao gozo. Pois o que o
discurso do capitalismo contemporâneo precisa é da procura ao gozo que
impulsiona a plasticidade infinita da produção das possibilidades de escolha no
universo do consumo. Ele precisa da regulação do gozo no interior de um
universo mercantil estruturado. Para ser mais preciso, ele precisa da
instauração daquilo que Jacques Lacan chama de um “mercado do gozo”[25], gozo disponibilizado através da infinitude
plástica da forma-mercadoria. A
consciência desta passagem da ética protestante do trabalho ascético para a
ética do direito ao gozo aparece, por
exemplo, na crítica conservadora de
Daniel Bell contra a dissociação entre os imperativos tecno-econômicos de
produção e os imperativos culturais na modernidade ligados ao desenvolvimento
do eu e ao princípio do prazer: “O novo capitalismo (o uso desta palavra data
dos anos 20) continua exigindo as regras da moral protestante no domínio da
produção – ou seja, no domínio do trabalho – mas ele estimula ao mesmo tempo o
direito ao prazer e ao entretenimento”[26]. Esta contradição de imperativos
marca a tensão que encontramos na passagem de uma sociedade da produção para a
sociedade do consumo. Tensão que o próprio Bell reconhece muito bem ao lembrar
que: “O maior instrumento de destruição da ética protestante foi a invenção do
crédito. Antes, para comprar era necessário primeiramente economizar. Mas com
um cartão de crédito nós podemos satisfazer imediatamente nossos desejos”[27]. Dessublimação repressiva e a
função social do supereu
O
que nos interessa aqui são certas consequências psíquicas desta passagem da
sociedade da produção à sociedade do consumo. Jacques Lacan identificou talvez a maior delas ao insistir
que a figura social dominante do supereu na contemporaneidade não estava mais
vinculada à repressão das monções pulsionais, mas à obrigação da assunção dos
fantasmas. Não mais a repressào ao gozo, mas o gozo como imperativo. Daí
porque ele nos lembra que o verdadeiro imperativo do supereu na
contemporaneidade é: “Goza!”, ou seja, o gozo transformado em uma obrigação[28]. Já
há muito, não vemos mais a hegemonia de discursos sociais que pregam a
repressão ao gozo. Hoje, o verdadeiro discurso que sustenta os vínculos
sócio-culturais da contemporaneidade é, digamos, mais maternal. Trata-se, por
exemplo, do: “cada um tem direito a sua forma de gozo” (ou ainda “cada um deve
encontrar sua forma de gozo”) que podemos encontrar na liberação
multicultural da multiplicidade das formas possíveis de sexualidade[29].
Devemos pensar aqui na tese de que a incitação e a administração do gozo transformaram-se na verdadeira mola
propulsora da economia pulsional da sociedade de consumo, isto ao invés da repressão
ao gozo própria à sociedade da produção. De fato, a Escola de Frankfurt já
oferecia um aparato para pensar tal situação através do conceito de
“dessublimação repressiva”, utilizado inicialmente para a compreensão de certas
caracterísitcas das sociedades totalitárias. Sabemos como a noção de
dessublimação repressiva aparece no edifício frankfurtiano, entre outras
coisas, como possibilidade de instrumentalização social direta das monções
pulsionais sem recalcamento, fruto de uma época na qual o eu não seria mais
capaz de se impor como instância de mediação entre as exigências pulsionais do
isso e o princípio de realidade. Adorno, por exemplo, chega a falar em
“expropriação do inconsciente pelo controle social”[30]
que se imporia devido à fraqueza do eu. Em paragens distintas, Lacan, ao falar
da “assimilação social do indivíduo levada ao extremo”[31]
não pensava em outra coisa; a exceção de que, para o psicanalista
parisiense, o eu não é exatamente uma
instância de mediação, mas já é desde sempre construção reificada de imagens
socialmente ideais. Daí a falta de sentido em procurar evitar a expropriação
social do inconsciente através de alguma espécie de “fortalecimento” do eu. Mas no interior deste debate,
devemos lembrar como Marcuse configura corretamente tal expropriação do
inconsciente como neutralização social do conflito entre princípio de prazer e
princípio de realidade através de uma satisfação administrada, ou seja:
“uma liberalização controlada que realça a satisfação obtida com aquilo que a
sociedade oferece”, pois, “com a integração da esfera da sexualidade ao campo
dos negócios e dos divertimentos, a própria repressão é recalcada”[32].
Ou seja, abre-se a todos estes autores a
consciência de uma modificação substancial nos processos de socialização. Eles
compreendem a tendência das imagens sociais ideais não estarem mais vinculadas
a representações do “auto-controle sereno” da renúncia pulsional como princípio
de conduta. Com a “integração da esfera da sexualidade ao campo dos negócios”,
ou seja, com a incitação ao gozo como elemento central na lógica de reprodução
mercantil do capitalismo, o que proliferam são imagens ideais daqueles que
instrumentalizam seus fantasmas e que pautam sua conduta pela exigência
irredutível de gozo. Para compreender melhor este aspecto
devemos lembrar que falta à construção frankfurtiana a compreensão de que tal
expropriação do inconsciente se dá, na contemporaneidade, através de novas
figuras sociais do supereu[33].
Não se trata de uma correção sem maiores consequências, pois ela limita
radicalmente, como veremos, a possibilidade de posição positiva de
promessas utópicas de reconciliaçào. Suas implicações ficam visíveis se
seguirmos o problema do supereu na experiência intelectual lacaniana. A inversão lacaniana do supereu
A longa elaboração lacaniana a respeito do
supereu terminou na definição do “Goza!” como o verdadeiro imperativo
superegóico. Vale sempre a pena salientar como esta elaboração é inversa àquilo
que normalmente encontramos em Freud. Sabemos que em Freud o supereu é o
resultado de um processo no qual socialização e repressão convergem devido a
exigência cada vez mais inconsistentes de renúncia pulsional. Como vemos na
reflexão freudiana sobre a neurose obsessiva, é a culpabilização do gozo que
aparece como resultado da ação do supereu. Lacan,
no entanto, tem clara consciência da modificação dos processos de socialização
na contemporaneidade e do seu impacto na configuração da figura do supereu. Em
um diagnóstico de época simétrico àquele fornecido por Horkheimer em 1936,
Lacan insiste no “grande número de efeitos psicológicos derivados do declínio
social da imago paterna. Declínio condicionado pelo retorno sobre o indivíduo
de efeitos extremos do progresso social” como a “concentração econômica e as
catástrofes políticas”[34]
Podemos pensar que Lacan tem em mente, entre outras coisas, o problema
horkheimeano do enfraquecimento da autoridade paterna devido ao impacto, no
interior da família, do desenvolvimento impessoal da grande corporação
burocrática. Impacto que faz com que a figura paterna (o que não quer
dizer a função paterna, tal distinção será utilizada a exaustão por
Lacan) seja cada vez mais : “ausente, humilhada, carente ou postiça”[35]. No
entanto, o declínio da figura ideal paterna não significa em absoluto
decréscimo da pressão do supereu e de suas consequências. Lacan irá trabalhar
por 30 anos até chegar a explicação de que o declínio da imago paterna abria
espaço para o advento de figuras fantasmáticas de autoridade que se
assemelhavam ao pai primevo do mito freudiano de Totem e tabu; ou seja,
ao pai-senhor do gozo que pauta suas ações pela procura incessante da
satisfação imediata[36].
Figura perversa, feroz e obscena, como dizia Lacan, que pouco tem a ver com a
figura tradicional de um pai que converge imperativos de repressão e de
sublimação. Isto fará Lacan afirmar, por exemplo, que a verdadeira versào do
pai é uma père-version. A este respeito, e em outras paragens,
Christopher Lasch dirá corretamente que o declínio da figura paterna é um dado
fundamental : “não tanto porque ele priva a criança do modelo de papel a
representar, mas por permitir que fantasias primitivas com o pai dominem o
desenvolvimento subsequente do superego”[37].
A
questão de Lacan torna-se então : o que significa pensar processos de
socialização a partir de “tipos ideais” que pautam suas ações pela procura
incessante de satisfação imediata? Fundamentalmente, significa dizer que a
identificação do sujeito com tais tipos será introjetada através de um supereu
não mais vinculado a repressão, mas ao imperativo do gozo. Daí porque Lacan
pode afirmar que : “o supereu se origina deste pai original mais do que mítico,
deste apelo como tal ao gozo puro, ou seja, apelo também a não-castração :
Goza!”[38].
Os processos de socialização tendem assim a não estarem mais vinculados a
mecanismo de repressão, mas a mecanismos que cobram de maneira irrestrita a
gratificação irrestrita. No
entanto, poderíamos perguntar : qual o problema com tal supereu? A princípio
nada melhor do que uma instância psíquica capaz de impulsionar exigências de
gratificação do gozo e que marcaria todos os discursos repressivos com o selo
da obsolescência. Ela seria a realização perfeita da ética do direito ao gozo,
desta moralidade libidinal necessária à mutiplicidade plástica da sociedade de
consumo. No entanto : “tal ordem [Goza] é impossível de ser satisfeita”[39],
e devemos nos perguntar de onde vem tal impossbilidade estrutural Lacan
sempre insistiu que a lei do supereu era uma “lei insensata”[40],
que funciona como um significante desprovido de significado. Freud também
insistira neste ponto. Tal caráter insensato indica, entre outras coisas, que o
supereu não tem nenhum conteúdo normativo, ele nada diz sobre como gozar
ou qual o objeto adequado ao gozo. Ele diz apenas um “Goza” sem
predicações, um puro “não ceda em seu desejo”. O caráter insensato deste puro
gozo fica evidente se pensarmos que toda escolha empírica de objeto é
inadequada a um gozo que procura afirmar-se em sua pureza de determinações, em
sua independência em relação a toda e qualquer fixação privilegiada de objetos.
Ele só pode se realizar no “infinito ruim” do consumo e da destruição
incessante dos objetos, que nada mais faz do que atualizar um excedente de gozo[41].
Ou seja, estamos diante de um supereu perfeito para uma sociedade marcada
exatamente pela obsolescência programada de mercadorias. Sociedade que deve
alimentar o fluxo contínuo de equivalências em campos sociais cada vez mais
alargados. Neste
sentido, este supereu lacaniano representa um passo além de idéias como, por
exemplo, as que animam a compreensão de Michel Foucault a respeito da mudança nas táticas dos processos
disciplinares a partir sobretudo dos anos 60. Mudança retratada em afirmações
do tipo : “Como resposta à revolta do corpo, encontramos um novo investimento
que não tem mais a forma de controle-repressão mas de controle-estimulação:
“Fique nu ... mas seja magro, bonito, bronzeado!”[42]. Ou
seja, apresente sua sexualidade ... mas no interior de formas socialmente
fornecidas e codificadas pelo mercado. No entanto, o que o conceito lacaniano
de supereu nos indica é a desvinculação geral entre
imperativo de gozo e conteúdos normativos privilegiados. Volto a
insistir, a lei do supereu é vazia, sem determinações privilegiadas. Desta
forma, ela pode nos ajudar a compreender porque, na sociedade contemporânea de
consumo : “Magro, bonito e bronzeado” pode facilmente ser trocado, por exemplo,
por “doente, anoréxico e mortífero” sem prejuízos para sua capacidade momentânea de mobilização de desejos. Como, em
última instância, toda determinação se mostrará provisória e inadequada diante
de um imperativo superegóico que exige o puro gozo, faz-se necessário que o
sistema de mercadorias disponibilize determinações de maneira cada vez mais
descartável e de maneira cada vez mais rápida, importando-se cada vez menos com
o pretenso conteúdo de tais determinações. Em última instância, isto nos faz
passar de uma sociedade da satisfação administrada para uma sociedade da insatisfação administrada na qual ninguém
realmente acredita nas promessas de gozo veiculadas pelo sistema de
mercadorias, a começar pelo próprio sistema, que as apresenta de maneira cada
vez mais auto-irônica e “crítica”[43].
Auto-ironia que vemos, por exemplo, através de publicidades que ridicularizam o
próprio discurso publicitário. Ou seja, estamos diante de uma sociedade na qual
os vínculos com os objetos são frágeis, mas que, ao mesmo tempo, é capaz de se
alimentar desta própria fragilidade. Até porque, não se trata de disponibilizar
exatamente conteúdos determinados de representações sociais através do mercado.
Trata-se de disponibilizar a forma vazia da reconfiguração incessante que passa
por e anula todo conteúdo determinado.. Tal
configuração sócio-cultural talvez nos ajude a compreender porque os grandes
sintomas da contemporaneidade não são mais o sentimento obsessivo de culpa ou a
“conversão” histérica, que pressupunham, cada um à sua maneira, a crença em desejos recalcados em sua própria enunciação por instâncias repressoras. Desejos que
habitariam uma Outra cena e que seriam
liberados através de procedimentos hermenêuticos de interpretação de
resistências. Se alguns dos sintomas mais correntes na atualidades são a ansiedade e a depressão, eles talvez nos indiquem resultados da
pressão deste supereu vinculado ao puro imperativo de gozo. Pois tanto a
ansiedade quanto a depressão pressupõem a consciência tácita da incapacidade em
sustentar escolhas de objeto. Enquanto a ansiedade é exigência do desejo em
atravessar de maneira cada vez mais rápida escolhas de objeto, a depressão é
exatamente a impossibilidade de vincular-se a uma relação de objeto. Os
dois casos podem ser vistos com
sintomas diretamente resultantes da introjeção de um supereu que ordena uma
injunção de gozo tão forte e incondicional que toda tentativa de realização
efetiva será necessariamente um fracasso. Desta forma, se o sentimento de culpa
aparecia como resultado direto do supereu repressivo que impedia o gozo,
depressão e ansiedade podem aparecer como o resultado desta nova configuração
do supereu que exige o gozo incondicional. Aqui
podemos voltar ao problema da dessublimação repressiva. Ao falar em
“expropriação do inconsciente pelo controle social”, Adorno, assim como outros
integrantes da Escola de Frankfurt, pensaram inicialmente tal expropriação sob
o signo de um certo projeto capaz de “manipular” a falsa consciência ao
fornecer conteúdos ideológicos positivos nos quais ela aliena seu desejo. Assim
ele dirá, por exemplo que : “a chamada psicologia do fascismo é largamente
engendrada pela manipulação. Técnicas racionalmente calculadas produzem o que é
ingenuamente visto como a irracionalidade ‘natural’ das massas”[44].
Mas a discussão sobre o supereu lacaniano nos mostra que tal expropriação
social do inconsciente prescinde de qualquer projeto ideológico positivo. Na
verdade, quanto mais puro e vazio for o imperativo superegóico socialmente
realizado, mais indestrutível ele será, ou seja, quanto menos “ideológico”
ele for, quanto menos ele estiver vinculado a determinações positivas, mais ele
terá força e mais ele poderá absorver toda e qualquer determinação
positiva (o que, é verdade, o próprio Adorno foi o primeiro a perceber ao
insistir no caráter absolutamente paródico da ideologia fascista). Socialização através de fantasmas Vale a pena terminar este artigo
através do desdobramento de uma consequência maior a respeito desta nova forma
de supereu desvinculada dos móbiles de repressão direta. Pois ela traz
necessariamente uma nova maneira dos sujeitos lidarem com seus fantasmas. Em
uma situação histórica na qual o supereu aparece como instância direta de
repressão, os fantasmas têm naturalmente o destino neurótico da censura, do
recalcamento e da denegação. “Assumir” seus fantasmas à luz do dia : eis tudo o
que o neurótico seria incapaz. Mas, hoje, em uma situação histórica na qual o
supereu aparece vinculado ao imperativo do gozo, os sujeitos são, a todo
momento, chamados a assumir seus fantasmas, de preferência na arena do mercado.
O dito de Adorno, segundo o qual: “quem quiser adaptar-se, deve renunciar cada
vez mais à fantasia”[45] perdeu atualmente todo o seu
sentido. Ao contrário, enunciar seus fantasmas através do consumo, mesmo os
aparentemente mais avessos ao reconhecimento social (como os fantasmas masoquistas
de auto-destruição, fantasmas de ‘sadismo chic’ e outras modalidades de
fantasmas perversos), é cada vez mais um elemento central dos processos de
socialização. A assunção do fantasma é cada vez mais a forma de
reconhecimento entre sujeitos. De fato, no interior da sociedade de consumo,
os sujeito se reconhecem através da socialização de seus fantasmas. Um
exemplo maior desta lógica de exposição dos fantasmas no espaço do consumo pode
nos ser dado se voltarmos os olhos àquele que é o elemento fundamental no
imaginário da sociedade de consumo : a publicidade. Notemos, por exemplo, a
significação do aparecimento do corpo sexualmente ambivalente como
elemento maior da retórica publicitária do final dos anos 90. O caso mais
ilustrativo aqui é a campanha mundial da marca de moda Versace desenvolvida pelo fotógrafo Steven
Meisel e pela A/R media em 2002. Ela se resume à fotos de um casal na cama ou
em um quarto com decoração carregada e pretensões de luxo. Alem disto, há
apenas a assinatura do anunciante. Nós sempre sabemos quem é um dos parceiros
(um homem ou uma mulher bem vestidos em posição de auto-confiança, tédio e
domínio da situação). Mas nós nunca sabemos quem é o outro, já que ele sempre
aparece sem rosto, jogado em um canto para denotar que ele foi usado em um jogo
sexual, com roupas íntimas femininas e traços de corpo masculino. Implicações
de lesbianismo lipstick, de homossexualismo e de ambiguidade sexual são
evidentes. Note-se que este apelo ao embaralhamento de papeis sexuais não é
direcionado para um target homossexual.
O target da Versace é composto basicamente de mulheres com mais de 30
anos. A diferença sexual nunca colocou
problemas para a retórica publicitária.
Mas os anos 90 viram a proliferação de imagens de ambivalência, assim
como uma certa feminização de representações masculinas em produtos cujo target
nada tem a ver com públicos homossexuais. Um exemplo aqui é a publicidade do
perfume Vice-Versa, de Ferré. Trata-se de um homem nu que é abraçado por trás
por uma mulher nua. As conotações de inversão de papeis são claramente
evidentes. Ao comentar tal campanha, Massimo Canevacci identificou bem sua
força ao lembrar que ela envolve : “o possível cliente não para os benefícios
derivados do uso eventual do produto, mas pelas possibilidades polimórficas que
se abrem ao ingressar no reino (frame)
das inversões e contorções corporais, fonte de inusitadas e inesperadas
excitações”[46]. É dentro desta mesma lógica de
“possibilidades polimórficas” abertas pela sociedade de consumo que devemos ler
a transformação de um certo ‘sadomasoquismo chic’ em paradigma do comportamento
sexual socialmente aceito e veiculado pela publicidade (Louis Vuitton, DuLoren,
entre outras marcas)[47]. E em um dia não muito distantes
teremos toda a gramática dos fantasmas sádicos e masoquistas a disposição no catálogo de vendas da C&A
. Tais modulações da reconfiguração da
retórica publicitária nos lembra, entre outras coisa, que a sociedade de
consumo não precisa mais do corpo como espaço unificado de determinação da
identidade. Ela precisa do corpo como tela cada vez mais plástica de projeções
fantasmáticas. Desta forma, a sociedade de consumo realizou uma aspiração maior
dos movimentos de contestação dos anos 60 :
ela colocou a fantasia no poder. Vladimir
Safatle, professor
de filosofia da USP e organizador de “Um limite tenso: Lacan entre a filosofia
e a psicanálise” (Unesp, 2003) [1] FREUD, Sigmund, O futuro de uma ilusào, , [2] Isto levará Freud, por exemplo, a afirmar que : “a exploração psicanalítica do indivíduo ensina com uma insistência particular que o deus de cada homem é à imagem do pai, que a relação pessoal a Deus depende da relação ao pai carnal, que ela oscila e se transforma a partir desta última, e que Deus não é outra coisa que um pai elevado ao nível superior” (FREUD, Totem und tabu, p. 177). Ou ainda, a respeito do comportamento social das massas : “Há nas massas humanas uma forte necessidade de uma autoridade que se possa admirar (...) A psicologia do indivíduo nos ensinou de onde vem tal necessidade das massas. Trata-se da nostalgia do pai” (FREUD, O homem Moisés e a religião monoteista, p. 207). Daí a fórmula canônica a respeito da formação das massas: “Uma massa psicológica é a reunião de indivíduos que introduziram a mesma pessoa no supereu e que, na base desta comunhão, identificaram-se uns aos outros no eu” (FREUD, Novas conferências de introdução à psicanálise, p. 94) [3] FREUD , Das Unbehagen der Kultur, p
97 [4] LACAN, Ecrits, p. 136. O que fica muito claro quando Freud afirma que: “o supereu adota também as influências de pessoas que tomaram o lugar dos pais, como educadores, mestres, modelos ideais. Ele normalmente se distancia cada vez mais dos indivíduos paternos orginários e advém mais impessoal” (FREUD, Novas conferências sobre a psicanálise, p; 90) [5] FREUD, O homem Moisés e a religião monteista, p. 196 [6] Cf. FREUD, Totem e tabou, p. 191 [7] Cf. LÉVI-STRAUSS, La pensée sauvage e
LÉVI-STRAUSS, Le totémisme aujourd’hui [8] Neste sentido, para além do desamparo estritamente compreendida
como experiência subjetiva vinculada à angústia cuja fonte encontra-se nos
desdobramentos do estado de prematuração do bêbe ao nascer (com sua
incompletude funcional e sua insuficiência motora), o uso freudiano da noção de
desamparo no interior desta teoria evolucionista das concepções de mundo pode
nos levar a uma articulação complementar. Pois devemos estar atento ao fato da
temática do desamparo ganhar relevância exatamente em um momento histórico de
desintegração da possibiidade de apreensão do sentido como totalidade de
relações e de ruptura de um pensamento da participaçào entre homem e
natureza. Através da noção de desamparo, Freud pode trabalhar as.incidências
clínicas de um certo diagnóstico de época vinculado aos processos de
desencantamento do mundo e de autonomização das esferas de valores; um
diagnóstico bem sumarizado na afirmação : “para o homem civilizado, a morte não
tem significado”, pois, “ele aprende apenas a minúscula parte do que a vida do
espírito tem sempre de novo, e o que ele aprende é sempre algo provisório e não
definitivo, e portanto para ele a morte é uma ocorrência sem significado”
(WEBER, A ciência como vocação, p. 166). Além da morte, a psicanálise
lembra que a diferença sexual e as escolhas de objeto também aparecem como
manifestaçào da pura contingência . [9] Isto leva a Freud afirmar que : “o sentimento de culpa é claramente apenas o medo da perda de amor, uma ansiedade social” (FREUD, Das Unbehagen der Kultur, p. 85) [10] A visão freudiana do discurso científico será fundamentalmente positivista, apesar da sua crítica à transparência da consciência e aos processos imaginários de projeção e introjeção próprios à maneira com que o eu opera enformações (Gestaltung) do mundo exterior (FREUD, Totem und tabu, p. 48).Para Freud, o discurso científico é realista e correspondencialista, já que a verdade é aqui compreendida como acesso epistêmico positivo ao real: “coincidência com o mundo exterior real” (übereinstimung mit der realen Aussenwelt) (FREUD, Novas conferências, p. 184). Por outro lado, o progresso científico seria cumulativo: “as trasnformações das opiniões científicas são desenvolvimento progrssivo, e não rupturas (Umsturz)” (idem, p. 56) [11] Na visão de mundo científica, o sujeito deverá : “assumir todo o seu desamparo e sua insignificância (Geringfügigkeit) no curso do mundo” (FREUD, O futuro de uma ilusão, p. 50) [12] FREUD, O futuro de uma ilusão, p. 45 [13] FREUD, Novas conferências introdutórias à psicanálise, p. 232 [14] Isto segundo a noção de que, diante de lideranças carismáticas : “o indivíduo abandona seu ideal do eu (Ichideal) e o troca pelo ideal da massa, encarnado pelo líder (Führer)” (FREUD, Massenpsychologie und Ich-analyse, p. 144) [15] WEBER, Max, A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paulo, Centauro, p. 56 [16] idem, p. 102 [17] idem, p, 42 [18] idem, p. 83 [19] Lembremos como Lacan insiste que a voz e o olhar são objetos parciais que indicam a redução da Lei à dmiensão do supereu. Este caráter superegóico da vocaçào fica claro em afirmações como : “Contra as dúvidas religiosas e a inescrupulosa tortura moral, e contra todas as tentações da carne, ao lado de uma dieta vegetariana e de banhos frios, prescreve-se : ‘trabalha em tua vocação’” (WEBER, idem, p. 126) [20] idem, p. 95 [21] Proposição que não seria absolutamente estranha a Freud, para quem a gênese da consciência moral (Gewissen) era necessariamente derivada do fato empírico da ameaça de castração vida do pai e do medo da perda do amor paterno. De onde se segue que, para o materialista Freud, a moralidade é fruto do sentimento de rivalidade em relaçào ao pai . Neste ponto, remeto ao meu SAFATLE, O ato para além da Lei in Um limite tenso, Unesp, 2003. [22] FREUD, Das Unbehagen der Kultur, p.
505 [23] Ver, por exemplo, o clássico MATTHES, Krise der Arbeitsgesellschaft, Frankfurt,
1983 [24] OFFE, Claus; Trabalho e sociedade, Rio de Janeiro, p. 12 [25] LACAN, Seminário XVI, sessão do 13/11/68 [26] BELL, Daniel, The cultural contradiction of the capitalism, New York, Basic Books, p. 85. Ou, como nos lembra Tom Frank: “Desde a década de 20, pelo menos, o consumismo vem sendo uma forma de revolta contra valores mais antigos, ligados à produção. Enfatizou o prazer e a gratificação, em oposição à restrição e à repressão da tradição puritana” (FRANK, Tom; O marketing da libertação do Capital in Cadernos Le monde diplomatique, p. 43). Max Weber já havia percebido esta mudança inexorável na moralidade econômica do capitalismo ao afirmar que : “No setor de seu mais alto desenvolvimento, nos Estados Unidos, a procura da riqueza, despida de roupagem ético-religiosa, tende cada vez mais a associar-se com paixões puramente mundanas que frequentemente lhe dão o caráter de esporte”(WEBER, A ética protestante, p. 143) [27] BELL, Daniel, idem, p. 31 [28] LACAN, Séminaire XX, p. 10 [29] O adjetivo “maternal” não funciona aqui como uma simples metáfora. Ele faz alusão à noção psicanalítica da existência de um supereu materno resultante da introjeção do investimento libidinal da figura materna. Processo este anterior à consolidação de um supereu através da introjeção da identificação paterna como saldo da saída do complexo de Édipo. Ele responde também pelo problema referente ao princípio de investimento libidinal em vínculos sociais no interior de uma sociedade marcada pelo “declínio da imago paterna”, para falar com Lacan. [30] ADORNO, Freudian theory and the pattern of
fascist propaganda, p. 431 [31] LACAN, Ecrits, p., 146. Ou ainda, quando ele escreve sobre: “o desenvolvimento que crescerá, neste século, dos meio de agir sobre o psiquismo, um manejo concertado das imagens e paixões do qual já se fez uso com sucesso” (LACAN, AE, p. 120) [32] MARCUSE, Cultura e sociedade II, p. 106 [33] O que Slavoj Zizek já havia indicado ao afirmar que : “A dessublimação repressiva é apenas uma maneira, a única maneira possível, no contexto teórica da Teoria crítica da Sociedade, de dizer que, no totalitarismo, a Lei social começa a funcionar como supereu, assume os traços de um imperativo do supereu” (ZIZEK, Eles não sabem o que fazem, p. 31) [34] LACAN, AE, p. 60 [35] LACAN, AE, p. 61 [36] Esta figura do pai-senhor do gozo pode muito bem dar lugar a um
supereu materno que opera de maneira simétrica, o que o próprio Lacan percebeu
ao se perguntar : “Não há na neurose, atrás do supereu paterno, um supereu
materno ainda mais exigente e não opressor, mais insistente? “ (LACAN, SV, p. 162 [37] LASCH, A cultura do narcisismo, p. 215. Ou ainda : “À medida que as figuras de autoridade na sociedade moderna perdem sua ‘credibilidade’, o supereu individual cada vez mais tem origem nas primitivas fantasias infantis sobre seus pais – fantansias carregadas de ódio sádico – e não em ideais do eu interiorizados, formados pela experiência posterior com modelos amados e respeitados de conduta social” (LASCH, A cultura do narcisismo, p. 33) [38] LACAN, S XIX, sessão de 16/06/71 [39] LACAN, idem [40] LACAN, S I, p. 119 [41] Lacan compreendeu este caráter “puro” da Lei superegóica ao analisar a função da Lei no interior do universo fantasmático do Marques de Sade. A Lei sadiana, que ordena a todos os sujeitos o “direito de gozo”, funda-se exatamente na rejeição de toda fixação privilegiada de objeto. Este princípio de equivalência geral entre objetos leva à negação destrutiva de todo objeto. Neste ponto, ao menos para Lacan, o caráter pura do Lei sadiana seria equivalente ao caráter puro e a priori do imperativo moral kantiano. [42] FOUCAULT, Michel, Microfísica do poder, Rio de Janeiro, Graal, 1996, p. 147 [43] O que já havia sido claramente compreendido por Debord.
Lembremo-nos de sua afirmação : “À aceitação dócil do que existe pode juntar-se
a revolta puramente espetacular : isso mostra que a própria insatisfação tornou-se mercadoria, a partir do momento em
que a abundância econômica foi capaz de estender sua produção até o tratamento
desta matéria-prima” (DEBORD, A sociedade do espetáculo, p. 40). Sobre
este ponto, ver também, FONTENELLE, Isleide; O nome da marca [44] ADORNO, Soziologische Schriften I, p.
430 [45] ADORNO, Theodor, Tempo livre in Indústria cultural e sociedade, Paz e Terra, 2002, p. 120 [46] CANEVACCI, Massimo, Antropologia da comunicação visual, p. 139 [47] Em BARTHEL, Diane, Putting on appearances : Gender and advertising, Temple University Press, 1988, p. 81, a autora analisa várias campanhas publicitárias nas quais: “o sadismo é apresentado como um elemento cotidiano, mesmo desejável da vida cotidiana”. |