O Trauma
(trechos extraídos do capítulo II do livro de Teresa Pinheiro, "Ferenczi : do grito à palavra"Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed. Ed.UFRJ, 1995)
A Linguagem da Paixão e
a Linguagem da Ternura
O Desmentido e a Clivagem Traumática
A Comoção Psíquica e a Alucinação Negativa
(...) A marca registrada da teoria do trauma ferencziano, assim como a sua originalidade, é atribuir ao desmentido toda a responsabilidade do trauma . O desmentido é aquilo que impede o percurso do processo de introjeção, conceito postulado por Ferenczi em 1909 e que segundo ele, é a única coisa que a libido sabe fazer.( Ferenczi, S.,"Tranferência e Introjeção", in Psicanálise I).
A criança só pode ter uma palavra própria quando intermediada pelo adulto. Num primeiro tempo ela emprestada as palavras ao adulto e simultaneamente é a este que ela dirigirá sua palavra para obter uma confirmação. Este vaivém é condição imprescindível para que a criança conquiste sua própria palavra. É portanto por intermédio do adulto (suporte da introjeção) que a fala da criança pode ou não ter sua existência autorizada.
É fácil compreender que para Ferenczi o problema deve ser visto pelo viés do adulto, do interlocutor da criança, e não pelo viés desta última. Segundo ele, deve-se analisar o problema pelo lado do adulto para se compreender a origem do trauma.
O acontecimento do trauma pode ser relatado pela criança antes de ser desmentida. Ela não compreendeu muito bem o ocorrido, porque não tem a percepção daquilo que se passou. No exemplo dado por Ferenczi, o adulto vai ouvir o relato da criança como se se tratasse de uma ficção e não de um acontecimento real.
Se tudo indica que Ferenczi acerta o alvo ao afirmar que o desmentido é o fator essencialmente traumático e desestruturante, parece , no entanto, que ele se perde na justificativa de justificá-lo. A confusão que cria começa em sua abordagem, que coloca de um lado a verdade e do outro a mentira, atrelando-as respectivamente ao fato real e à fabulação.
Assim, se prestarmos atenção, encontraremos em vários textos de Ferenczi, situados em posições expostas e estanques, de um lado o fato real e a verdade, e, de outro, a mentira e a fabulação. Dessa forma, o fato real está para a verdade assim como a fabulação está para a mentira. Ao separar os dois blocos com conotações diferentes e de forma maniqueísta, teremos a facção do bem e a facção do mal. Dessa maneira fica impossível dar um passo à frente. O tiro parece ter saído pela culatra.
Para Ferenczi é preciso que o fato seja real para que o desmentido tenha força da Verwerfung (recusa de inscrição). Entretanto, sabemos, e Ferenczi também que a questão da realidade se perde ou tem valor muito relativo quando lidamos com o psiquismo. O que importa é a realidade psíquica. O registro psíquico é feito tanto de eventos reais quanto de fantasmados; os dois terão o mesmo valor psíquico. Este foi, sem dúvida, o salto dado por Freud quando abandonou a etiologia da histeria fundamentada no evento traumático - uma sedução - efetivamente ocorrido na infância. Se não importa o fato ser real ou fantasiado, como pode o desmentido se manter de pé como fator essencialmente traumático ?
Vejamos agora a questão da verdade e da mentira, também muitas vezes ligadas, no texto ferencziano, à sinceridade e à hipocrisia.
Ao colocar a verdade e a mentira como diametralmente opostas e sem possibilidade de encontro entre si, Ferenczi incorre na mesma síndrome que parece ter atingido o adulto que desmente, pois ele aponta para a univocidade dos enunciados, quer dizer, para a ausência de polissemia neles. Nenhuma verdade pode ser eterna e não se tornar mentira num determinado momento ou dentro de um dado contexto. Por mais que se pretenda uma verdade absoluta e unívoca, esse intento estará sempre fadado ao fracasso, pois as palavras que compões o enunciado tornaram-se necessariamente ambíguas e de múltiplos sentidos. A sinceridade, portanto, nada mais é do que a aceitação da polissemia e a impossibilidade do unívoco, e a hipocrisia implicaria a negação disso.
Colocado de outra forma, pouco importa se o fato é real ou não. Já a relação entre a verdade e a mentira nos leva, obrigatoriamente, a perguntar de que lugar fala o adulto que desmente a criança.
Poderíamos concluir que a história contada pela criança ao adulto é traumática antes de mais nada para o adulto que, incapaz de absorvê-la, relega-a ao plano da mentira. Opondo assim, de forma radical, de um lado o fato real e a verdade, e de outro a mentira e a fabulação, o adulto rouba à fala da criança o sentido ambíguo das palavras, sua polissemia, encarcerando-as na univocidade. Resta à criança engolir esta palavra de sentido unívoco e desprovida de ambigüidade. Palavras cristalizadas, radicalmente proibidas de serem pronunciadas e, portanto, de circularem livremente(...)
O que se passa no trauma é que o adulto interdita à criança não apenas as palavras, como também a possibilidade de ambigüidade, de múltiplos sentidos. São palavras destinadas a ficarem enclausuradas, desprovidas de polissemia, tornando-se representações proibidas de fantasmatização e para retomar a expressão escolhida por N. Abraham e M. Torok, são de alguma forma, "palavras enterradas vivas". (...)
Diante do desmentido a criança ficará confusa. Será o adulto ou será ela que não merece confiança ? A criança processa essa questão rapidamente, "incorporando" o sentimento de culpa do agressor, tornando-se clivada, culpada e inocente ao mesmo tempo. É mais seguro aceitar o sentimento de culpa do que abrir mão do objeto da introjeção. Podemos perceber bem que perder o objeto nesse momento equivale ao risco de aniquilamento, de despedaçamento psíquico.
O que a criança entrevê é o risco da morte física e psíquica. Resta então garantir a permanência do objeto a qualquer preço. A criança encontra a solução de transplantar o sentimento de culpa do agressor para si própria, suportar a injustiça do desmentido e com isso recuperar o estado de ternura anterior ao trauma. Para o traumatizado de Ferenczi serão importantes, evidentemente, questões como a confiança, a justiça e as noções de verdade e mentira. "
(...) Na literatura psicanalítica, sobretudo a de seus pioneiros, encontraremos o termo clivagem para designar cisões no aparelho psíquico. Os moldes , funções e natureza das clivagens podem ser bastantes diversos(ou seja obedecem a metapsicologias diversas). O único ponto em comum parece ser o fato de que ocorre uma divisão. Assim ela pode designar separações entre os sistemas ICS e PCS/CS, ou também entre as instâncias do aparato egóico quando da sua emergência, por exemplo. Ou pode ainda designar uma separação dentro do próprio ego, como é o caso da melancolia, em que a identificação com o objeto perdido é resultado de uma cisão ou clivagem. Os exemplos nada têm em comum nas suas descrições metapsicológicas.
A clivagem do trauma, fruto do desmentido, estaria mais próxima da descrição metapsicológica da melancolia. Se, no entanto, percorrermos a obra de Ferenczi, verificaremos que o termo clivagem é inicialmente encontrado para designar a metapsicologia da estruturação do aparato egóico(Ferenczi, S.,"Thalassa, essai sur la théorie de la génitalité"). Está portanto, diretamente vinculado ao trauma estruturante. Só mais tarde surgirá ligado à noção da identificação com o agressor. É só nesse caso, como já vimos, será um trauma desestruturante.
Como o que nos interessa aqui é o trauma desestruturante ferencziano, estamos portanto diante de uma clivagem do ego. A descrição ferencziana da identificação com o agressor propõe a imagem de uma invasão no ego da criança. O agressor usurpa o espaço egóico e toma posse deste lugar como se assumisse a fala da criança ou ocupasse seu espaço psíquico.
A paixão toma a palavra e separa-se da ternura, sem que qualquer contato entre elas seja possível, como se uma desconhecesse a existência da outra. Ambas se pretendem representantes legítimas do ego infantil e, para tal, se auto-reconhecem. Assim, o agressor nos textos de Ferenczi é o posseiro do ego, ignorando seu verdadeiro dono. A clivagem, nesse caso, consiste em uma separação em duas partes que não mantêm contato entre si.
O texto de Freud de 1938, "A clivagem do ego no processo de defesa", descreve a mesma formulação de Ferenczi. Em ambos os autores, o fato real invade a cena psíquica, obrigando-a a uma cisão total. A clivagem, decorrência da separação em instâncias, pressupõe uma dinâmica entre elas, uma função diferente para cada uma, de forma que a troca - o contato entre elas - seja não só necessária, mas contínua.
No caso da cisão provocada pela identificação com o agressor, nada disso é possível.
Vejamos essa questão através da identificação melancólica. Neste caso, o objeto da identificação parece ter uma função superegóica. Se tranpusermos esse pressuposto para o trauma desestruturante, seria como se a criança tivesse precocemente, e às pressas, forjado uma emergência do aparato egóico, mas a incomunicabilidade entre o objeto de identificação e o ego incipiente da criança desqualifica totalmente, a função superegóica pretendida pelo objeto de identificação. Se o projeto era esse, certamente fracassou. O tom ditatorial, a voz de algoz usurpador do ego infantil, ou do objeto perdido do melancólico, parece soar como o discurso do superego, no sentido vulgar do termo, ou do que Freud chamou de superego cruel."
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