O mito do trauma ferencziano
(extraído do livro de Teresa Pinheiro "Ferenczi: do grito à palavra" Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.:Ed.UFRJ, 1995.)
" O mito do trauma ferencziano obedece a uma seqüência em que certos igredientes são necessários, mas também a uma determinada ordem temporal dos eventos e a um número preciso de personagens. É também imprescindível a debatida questão da realidade dos fatos. Este último dado leva geralmente os leitores de Ferenczi a torcer o nariz, pois, para eles, trata-se de uma velha história , de uma questão há muito ultrapassada.
A história contada por Ferenczi (Ver Ferenczi, S., "Análise de crianças com os adultos"(1931) e "Confusão de línguas entre os adultos e a criança"(1933), in Psicanálise IV.) parece simples, embora seja complexa. Nela encontramos o enredo de uma violência sexual praticada por um adulto contra uma criança e, após o fato ocorrido, a maneira pela qual a criança, na busca de compreender o que se passou, narra o evento a um outro adulto, que a desmente.
Com três personagens - dois adultos e uma criança - a história pode ser separada em dois momentos. No primeiro, os igredientes são : uma sedução por parte da criança sob a forma de brincadeira , forma que Ferenczi chamou de linguagem da ternura, que corresponde a um certo parâmetro de organização sexual e psíquica; a essa sedução o adulto responde com a linguagem da paixão, gerando assim uma confusão de língua (Ver "Confusão de línguas entre os adultos e a criança").
Ternura aqui é entendida não como ausência de sexualidade, mas como anterior à sexualidade sob o primado do genital. O adulto, por sua vez, não reconhece a linguagem da ternura da criança, e a toma como um igual, ou seja, toma a linguagem da ternura como uma sedução da ordem genital.
A violência sexual em si não aparece aqui como fator traumático, mas sim como prova real do evento, que tem como conseqüência a identificação com o agressor. Essa identificação, segundo Ferenczi, seria produto não da violência praticada, mas do fato de que o adulto agressor sentiria culpa logo após praticar a violência; este sentimento de culpa seria imcompreensível para a criança.
Seria por conta do enigma da culpa que a identificação com o agressor teria lugar. A historinha contada por Ferenczi prossegue: a criança não iria então à procura de um outro adulto que pudesse dar sentido ao que não faz sentido. Esse adulto, por sua vez, não suportando o relato da criança, a desmente, exigindo de maneira radical e unívoca que o escutado não passe de uma fabulação infantil. É esse desmentido o que torna impossível a introjeção.
Segundo Ferenczi, todos esses igredientes são necessários à composição do que interessava definir e compreender: o trauma desestruturante. A ausência de certos elementos ou, mais precisamente, a ausência do desmentido tornaria o trauma estruturante. Em outras palavras, se todos os elementos e igredientes são absolutamente necessários à existência de um trauma ferencziano, é somente o último, o desmentido, que o fará ser desestruturante. O trauma seria, portanto, uma seqüência de igredientes e de eventos que, acrescidos do desmentido, adquiririam a condição de desestruturante.
Ferenczi se refere aos traumas como sendo, na maior parte das vezes, estruturantes e remete-os a uma cadeia filogenética pré-inscrita, na qual, além de inevitáveis, são necessários (Ver "Thalassa, ensaio sobre a teoria da genitalidade"). Cada um deles corresponde a uma confusão de línguas e a uma violência sexual praticada contra a criança. Algo necessariamente excessivo e qualitativamente diferente é oferecido à criança, desde a erogeneização do corpo do infans até a mais banal das infrações - se é que podemos falar assim - imposta à organização psíquica infantil. A ela o ser humano estaria escravizado filogeneticamente, sendo-lhe impossível a repetição e a alucinação negativa como únicas alternativas psíquicas.
Se cabe ao desmentido toda a responsabilidade da desestruturação psíquica, é fundamental tentar situá-lo, atribuir-lhe sobretudo uma descrição metapsicológica que tenha sustentação. A tarefa não é fácil. Ferenczi jamais se preocupou com o estatuto metapsicológico dos fenômenos que descreveu; além disso, esbarrou em problemas como o do caráter metapsicológico dos processos identificatórios e o de questões complexas como a noção de narcisismo, chegando, até mesmo, a questões linguísticas sequer vislumbradas na época".
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