Um pouco de História

(trecho extraído do artigo de Renato Mezan, "Do auto-erotismo ao objeto: a simbolização segundo Ferenczi" , publicado na Revista Percurso n. 10, em 1993, São Paulo, pelo Instituto Sedes Sapientiae)

"(...) convém situar Ferenczi em seu contexto, pois a época em que viveu - entre 1873 e 1933 - já não nos é familiar. A vida moderna coincide com o surgimento da Hungria moderna, e com um notável florescimento da cultura artística e científica na cidade onde se radicou, Budapeste.

Poucos anos antes do seu nascimento, em 1868, a Hungria recebe um estatuto político que lhe garante a autonomia interna no quadro do Império Austro-Húngaro; Budapeste torna-se a capital e experimenta um rápido desenvolvimento em termos econômicos, urbanísticos e culturais. Ali se concentram os jornais, os teatros, a vida intelectual e artística; a cidade polariza um sentimento nacional húngaro que já se manifestava há uma ou duas gerações.

Mas Budapeste, com sua crescente sofisticação, é malvista pelos setores mais tradicionais da aristocracia e da Igreja, ferozmente reacionárias; a presença de uma forte minoria judaica atrai-lhe a alcunha de "Judapest". Com o passar dos anos, intensifica-se a oposição entre um país agrícola, atrasado e ainda semifeudal, e sua capital dinâmica e aberta às correntes inovadoras da cultura européia, percebidas como "perigosas" e "subversivas" pelas classes dominantes.

A isto se acrescenta uma forte antipatia da intelectualidade pelo centro hegemônico do Império, a cidade de Viena: de modo que a jovem capital se volta muito mais para a França e para a Alemanha, fazendo contrastar sua receptividade ao novo com o conhecido conservadorismo vienense.

Como em vários países da Europa Central e Oriental, a intelectualidade húngara imbui-se de uma missão civilizadora, vendo a si própria tanto como a encarnação da inteligência da nação - de onde o interesse em resgatar e aprimorar os ricos veios da cultura popular - quanto como canal de comunicação entre o local e o universal - de onde a busca de idéias e de formas nos centros europeus mais desenvolvidos.

Assim nos teatros de Budapeste são encenadas as peças de Bernard Shaw e de Strindberg, fundam-se revistas como Nyugát (Ocidente), busca-se estar ao par dos avanços mais recentes na filosofia, na literatura e nas humanidades de que se fala em Paris ou em Berlim; mas ao mesmo tempo um compositor como Béla Bártok procura inspiração nos ritmos e melodias da tradição popular.

A combinação destes diferentes fatores resulta numa produção cultural de primeira grandeza de vários setores, que se estende por todo o período no qual viveu Ferenczi e da qual ele é aliás um dos mais ativos participantes. São contemporâneos de Ferenczi e vivem a poucos quarteirões dele, para só citar alguns nomes, o filósofo Gyorgy Luckacs, o historiador da arte Arnold Hauser, o sociólogo Karl Mannheim, o próprio Bártok (Jean-Michel Palmier, "La Psychanalyse en Hongrie", in R.Jaccard(org.). Histoire de la Psychanalyse, Paris, Le Livre de Poche, coll. Biblio Poche, volume II, p.163 ss. Boas indicações encontram-se também em Elizabeth Roudinesco, "Psichanalyse à l'Origine ou l'Impossible Rencontre"in Un Discours au Réel, Paris, Maison Mame, 1973, p.59ss.) , etc.

Ao contrário de Freud , que em Viena levava uma vida voltada essencialmente para seu trabalho e sem qualquer conexão com os principais criadores em outras áreas, Ferenczi é amigo de muitos intelectuais húngaros, escreve em suas revistas, freqüenta suas casas e os cafés onde se reúnem, e toma parte ativamente no debate de idéias ao seu redor. E isto ocorre antes mesmo de se tornar analista, como o comprovam os títulos das várias dezenas de artigos que escreveu nos anos que precedem seu encontro com Freud (Cf. Claude Lorin, Le Jeune Ferenczi: Premiers Écrits, 1899-1990, Paris Aubier, 1983).

A própria conversão de Ferenczi à psicanálise é uma prova de sua paixão pelo que de melhor se fazia e pensava na sua época. Tornar-se aluno de Freud em 1908 era abraçar um caminho fascinante, porém perigoso: a psicanálise, embora já possuísse um sólido arcabouço conceitual, era considerada por quase todos como um "conto de fadas científico", na expressão de Kraff-Ebing.

Ferenczi lê em meses de estudo o que existia da literatura analítica, traz à nova disciplina todos os seus formidáveis recursos intelectuais, e imediatamente imprime a ela seu carimbo característico, perceptível à primeira vista. Ferenczi já era, antes de se tornar analista, um observador atento e rigoroso, um escritos de primeira água e um teórico provido da imaginação mais audaciosa; estas qualidades marcarão sua carreira psicanalítica, e a psicanálise o ajudará a aprofundá-las e a refiná-las."


A seguir, trecho extraído do artigo "Férenczi: Cultura e História" de
Anna Verônica Mautner, in "Ferenczi: História, Teoria, Técnica" (Chaim Katz, org.) São Paulo, Ed. 34, 1996

"Visando uma arqueologia da Psicanálise, é impossível não notar a especificidade desse pequeno país, da sua relação com a Psicanálise. Budapeste-Viena, ora tão longe, ora
tão perto ! Aumenta a distância em torno dos movimentos de autonomia nacional na Hungria no momento de aderir à modernidade.

A Psicanálise entrou na Hungria com os movimentos revolucionários, antiimperialistas e, paradoxalmente, fortemente nacionalistas. Isto tornou-a imediatamente interdisciplinar. Associou-se facilmente a literatos, antropólogos, políticos, enfim, a todos aqueles que estavam envolvidos nos movimentos de formação da nacionalidade húngara.

Lutava-se para impor a língua húngara, até então restrita a situações informais e artísticas. Pesquisava-se a origem dos magiares e da sua mitologia, que no caso, diferentemente do que aconteceu na Alemanha, onde também se pesquisavam as raízes da mitologia germânica, era um retorno às raízes não imperiais, isto é, fora do Império Austro-húngaro. Era um retorno à Hungria não romana, não-turca, não-germânica. Na Alemanha, as pesquisas pan-germânicas eram um reforço à identificação alemã, enquanto na Hungria elas participavam da libertação dos húngaros contra a opressão dos Habsburgos.

Diante disso está claro que a Psicanálise nascida em Viena não poderia ser aceita em Budapeste, pois nesse momento Viena era a capital imperial da qual nós queríamos nos separar. A Psicanálise vai entrar na Hungria então pelas mãos de um cidadão chamado Fülop Stein, um médico húngaro especializado em alcoolismo. Ele passara um período em Zurich com Bleuler, conhecido por seu terror antialcoólico.

Fülop Stein conhece Jung em Zurich, e durante um simpósio de antialcoolismo realizado em 1907, fala de Jung e da Psicanálise para Férenczi. Nessa época, Férenczi era um neurologista aberto às formas alternativas em geral e já havia se envolvido com o espiritismo e com certas seitas orientais, visando sempre a diminuição da dor psíquica. Já tinha ouvido falar de Freud, mas as teorias de Freud, até aquele momento, não lhe despertaram o interesse. Em 1908, Jung apresenta Férenczi à Freud, junto com Fülop Stein.

... E tudo começou ali

Férenczi converteu-se imediatamente e logo começou o trabalho de convencimento dos seus colegas, no que foi bem sucedido. " (...)

"Ela não se instalou na Hungria apenas como uma prática e como teoria. A Psicanálise se instalou inteira na cultura, ela se fez cultura."

(...) "Quando a Psicanálise encontra essa língua húngara em tudo aquilo que se fala ou lê, no sentido da comunicação dos afetos, a Psicanálise e a língua húngara se encaixam perfeitamente. Tudo aquilo que se fala no consultório é a língua que o húngaro tem aperfeiçoado: a língua materna, que se manteve no lar até hoje. Só no fim do século passado e no começo deste é que se começou a usar o húngaro fora do lar, do lazer, das artes.

Na situação analítica encontramos duas situações . A língua do analisando é a língua materna, a língua dos afetos, da interpretação através da qual pretendemos inserir o nosso analisando numa certa altura, quando a precisão começa a ser necessária. Encontramos uma certa sincronia introjetada nessa nova ciência do afeto, ciência do cotidiano, do carnal, e na oficialização da língua materna em língua oficial do Estado".

Tudo isso ocorreu sob os olhares do Dr. Férenczi. Ele era um húngaro de primeira geração; é preciso lembrar que os judeus tiveram duas grandes entradas na Hungria: uma com os turcos - os judeus sefardins da invasão turca -, e a outra com a integração do Império austro-húngaro - os judeus asquenazins - , que vinham da Polônia e de todas as regiões do Leste europeu, numa grande liberdade de locomoção. Férenczi e Freud tinham vindo do Leste.

Tanto Freud como Férenczi eram de primeira geração, só que Férenczi, por ter sido criado na Hungria, então uma província de Viena, e talvez por um traço de sua personalidade, foi uma pessoa muito menos formal, tendo se envolvido mais com a cultura local e com os movimentos sociais.

Mas não foi só nisso que eles diferiram. Férenczi como bom médico de família da pequena e cosmopolita Budapeste, sempre foi muito envolvido pela responsabilidade da cura. Freud, na capital do Império, teve a oportunidade de ser ainda muito mais cosmopolita e isto incidiu em suas teorias.

A Budapeste do começo do século era uma cidade pequena, a burguesia praticamente se conhecia e o cliente quase nunca era um desconhecido. Dessa forma o compromisso com a cura era parte da vida do médico, mesmo que fosse um psicanalista, e não um clínico geral. Numa cidade pequena, na verdade, todos se conhecem e a responsabilidade de curar aumenta. Quer dizer , um parente de um cliente está ali e nós o conhecemos.

(...) Além de serem pessoas muito diferentes, recebiam também a influência da organização das duas cidades. Freud se caracterizava pela exigência do pensamento científico e por isso a visão do sofrimento era uma coisa natural, ou seja, admitia-se que o mal-estar existe.

Já Férenczi era o otimista, o esperançoso, não achava o sofrimento natural e queria curar o mal-estar. Férenczi queria curar, Freud privilegiava a pesquisa. Isto indica uma diferença ideológica que vai influir no que eles realizam e como realizam.

As relações Freud-Férenczi ou Viena-Budapeste eram simétricas. Esta simetria não se dava apenas na relação dominador-dominado, mas também na posição de dominado, que, malgrado a sua situação, continuava a realizar o seu destino."


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