Incorporação, a introjeção impossível

Marcia Coutinho de Carvalho

O que Férenczi chama em 1932 de a "introjeção do agressor", é a ausência da introjeção. Para resolver esse problema de terminologia Torok e Abraham decidiram chamar de "incorporação" à introjeção do agressor, ou seja a introjeção que não acontece.

Trata-se do objeto o qual não foi possível introjetar no ego, por não ser metabolizável em um dado momento, ou seja por não ter sido assimilável pela organização psíquica em formação.

A incorporação tem por objetivo recuperar de modo mágico e oculto um objeto que se furtou ao seu objetivo de mediatizar a introjeção do desejo.

Segundo Abraham e Torok ainda, na impossibilidade de a introjeção vir a termo, a solução encontrada pelo ego é um "fazer-de-conta" que houve a introjeção. "A incorporação conta uma falsa história ao ego", uma mentira que deverá ser escondida para sempre.

Neste aspecto no entanto, deve ser considerada e "respeitada" a realidade psíquica do sujeito , uma vez que esta é a que realmente importa, na constituição da incorporação enquanto mecanismo de defesa contra a dor da perda do objeto perdido.

Segundo Maria Torok a introjeção tal como Ferenczi concebeu a noção, comportaria três pontos:

  1. a extensão dos interesses auto-eróticos ;
  2. o alargamento do ego pela eliminação dos recalcamentos e
  3. a inclusão do objeto no ego e consequentemente"objetalização do auto-erotismo" primitivo

Assim a força motriz da introjeção não pode ser a perda afetiva de um objeto de amor.

Quando esta ocorre, o mecanismo fantasmático que constitui a incorporação entra em ação mediante a perda, que age como um interdito, e se constitui para a introjeção num obstáculo intransponível.

"Como compensação do prazer perdido e da introjeção ausente, realizar-se-á a instalação do objeto proibido no interior de si. É essa a incorporação propriamente dita". (Torok e Abraham,in A casca e o núcleo p.222)

A incorporação pode operar no modo da representação, do afeto ou de algum estado do corpo, através de um caráter instantâneo e mágico, obedecendo ao princípio de prazer e operando por meio de processos próximos a realização alucinatória.

A incorporação nasce de um interdito que ela contorna, sem verdadeiramente transgredi-lo.

Mas recusa o veredito da realidade, devendo por isso escapar a qualquer olhar inclusive ao do próprio ego...O segredo é obrigatório. Trata-se do desejo atingido por recalcamento. Através da fantasia alucinatóriade incorporação do objeto perdido.

Em caso de luto a natureza deste será função do papel que desempenhava o objeto no momento da perda. Se os desejos que lhe concernem foram introjetados apesar de o trabalho de luto ser um processo doloroso a integridade do Ego garantirá a saída. Não haverá doença de luto ou melancolia.

O trauma advém do processo de introjeção quando este se mantem inacabado pela perda do objeto amado.

No entanto o Ego se vê na obrigação de manter vivo aquilo mesmo que lhe causa sofrimentos.

A Imago, guardiã do recalcamento, foi constituída como depositária da esperança da realização dos desejos que ela mesma proibiu.A fixação imaginal e objetal é a esperança contraditória e utópica construída pela própria Imago que um dia autorizará a supressão do recalcamento.

E assim sendo, mergulha o Ego, que teve como prêmio a fixação, em total desamparo, já que terá doravante por destino a doença do luto.

Ainda segundo M.Torok, "Infelizmente, com muita frequência, o "luto" melancólico terá sido a última cartada do sujeito para obter um restabelecimento narcísico.

Fica fácil compreender tudo isso se considerarmos que o "enlutado" ainda não perdeu seu parceiro e que ele carrega o luto por antecipação por assim dizer. Ora, quando o sujeito aprende - por repetição do traumatismo de outrora - que ele deve provocar seu segredo amoroso, não lhe resta senão levar até o fim sua fantasia de luto: "Se aquele que me ama deve me perder deveras, ele não sobreviverá a essa perda".

Essa certeza dá uma grande serenidade, uma imagem do que seria a cura. Ela só se tornaria completa no dia em que "o objeto" tivesse realizado o sacrifício supremo..." (M.Torok, in A casca e o Núcleo, p.256)


Incorporação: magia oculta para recuperar o objeto-prazer

(trecho extraído do capítulo III do livro "A casca e o núcleo" , de
Nicolas Abraham e Maria Torok , São Paulo, 1995, Ed. Escuta)

"A maior parte dos caracteres falsamente atribuídos à introjeção vale, ao contrário, para o mecanismo fantasmático que constitui a incorporação. É esse mecanismo que supõe, para entrar em ação, a perda de um objeto, e, isso, antes mesmo que os desejos que o concernem tenham sido liberados. A perda, seja qual for a sua forma, agindo sempre como interdito, constituirá para a introjeção um obstáculo intransponível.

Como compensação do prazer perdido e da introjeção ausente, realizar-se-á a instalação do objeto perdido no interior de si. É essa a incorporação propriamente dita.

Ela pode operar no modo da representação, do afeto ou de algum estado do corpo, ou utilizando dois ou três modos simultaneamente. Mas, seja qual for o instrumento, ela se distinguirá sempre da introjeção, processo progressivo, em nome de seu caráter instantâneo e mágico. Na ausência do Objeto-prazer, a incorporação obedece ao princípio de prazer e opera por meio de processos próximos da realização alucinatória.

Além disso, essa magia recuperadora não poderia dizer seu nome. A menos que se trate de uma crise maníaca aberta, ela tem boas razões para se esconder. Pois não esqueçamos que ela nasceu de um interdito que ela contorna, sem verdadeiramente transgredi-lo. Ela tem por objetivo, no final das contas, recuperar, num modo mágico e oculto, um objeto que, por qualquer razão, se furtou à sua missão: mediatizar a introjeção do desejo. Ato eminentemente ilegítimo, uma vez que recusa o veredito do objeto e da realidade, a incorporação, bem como o desejo de introjetar dissimulado, deve escapar a todo olhar estranho, inclusive ao próprio Ego. Para sua sobrevivência, o segredo é obrigatório: uma diferença a mais com relação à introjeção que - segundo seu gênio próprio, e graças a seu instrumento privilegiado, a nominação - opera às claras.

A especificidade de cada um dos dois movimentos surge, portanto, claramente. Enquanto a introjeção das pulsões põe fim à dependência objetal, a incorporação do objeto cria ou reforça um liame imaginal. O objeto incorporado, exatamente no lugar do objeto perdido, lembrará sempre (em nome de sua existência e pela alusão de seu conteúdo) alguma outra coisa perdida: o desejo atingido por recalcamento. Monumento comemorativo, o objeto incorporado marca o lugar, a data, as circunstâncias em que tal desejo foi banido da introjeção: quantos túmulos na vida do Ego. Vê-se bem que os dois mecanismos operam verdadeiramente em correntes contrárias um em relação ao outro. Designar esses dois movimentos (introjetivo das pulsões e incorporativo do objeto) pelo mesmo termo não traz nenhuma clareza à comunicação."


Em sua conferência XXXI (A dissecção da personalidade psíquica), Freud esclarece: "Se alguém perdeu um objeto, ou foi obrigado a se desfazer dele, muitas vezes se compensa disto identificando-se com ele e restabelecendo-o novamente no ego, de modo que, aqui, a escolha objetal regride, por assim dizer à identificação".

Segundo o Vocabulário de Psicanálise de Laplanche e Pontalis, "incorporação" é :"O processo pelo qual o sujeito, de um modo mais ou menos fantasístico, faz penetrar e conserva um objeto no interior de seu corpo. A incorporação constitui uma meta pulsional e um modo de relação de objeto característicos da fase oral; numa relação privilegiada com a atividade buca e a ingestão de alimentos, pode igualmente ser vivida em relação a outras zonas erógenas e outras funções. Constitui o protótipo corporal da introjeção e da identificação".

Em "A sexualidade infantil", Freud esclarece:

"Chamaremos pré-genitais às organizações da vida sexual em que as zonas genitais ainda não assumiram seu papel preponderante. Até aqui tomamos conhecimento de duas delas, que dão a impressão de constituir recaídas em estados anteriores da vida animal.

A primeira dessas organizações sexuais pré-genitais é a oral, ou, se preferirmos, canibalesca. Nela, a atividade sexual ainda não se separou da nutrição, nem tampouco se diferenciaram correntes opostas em seu interior. O objeto de uma atividade é também o da outra, e o alvo sexual consiste na incorporação do objeto — modelo do que mais tarde irá desempenhar, sob a forma da identificação, um papel psíquico tão importante. Como resíduo dessa hipotética fase de organização que nos foi imposta pela patologia podemos ver o chuchar, no qual a atividade sexual, desligada da atividade de alimentação, renunciou ao objeto alheio em troca de um objeto situado no próprio corpo".

Na Conferência XXXI (A dissecção da personalidade psíquica) sobre "incorporação" Freud diz:

"A identificação tem sido comparada, não inadequadamente, com a incorporação oral, canibalística, da outra pessoa. É uma forma muito importante de vinculação a uma outra pessoa, provavelmente a primeira forma, e não é o mesmo que escolha objetal. A diferença entre ambas pode ser expressa mais ou menos da seguinte maneira. Se um menino se identifica com seu pai, ele quer ser igual a seu pai; se fizer dele o objeto de sua escolha, o menino quer tê-lo, possuí-lo. No primeiro caso, seu ego modifica-se conforme o modelo de seu pai; no segundo caso, isso não énecessário. Identificação e escolha objetal são, em grande parte, independentes uma da outra; no entanto, é possível identificar-se com alguém que, por exemplo, foi tomado como objeto sexual, e modificar o ego segundo esse modelo. Diz-se que a influência sobre o ego, motivada pelo objeto sexual, ocorre com particular freqüência em mulheres e é característica da feminilidade".

No terceiro ensaio de Moisés e o Monoteísmo, Freud se refere a "incorporação" da seguinte forma: "Minha construção parte de um enunciado de Darwin (1871, 2, p. 362 e seg.] e inclui uma hipótese de Atkinson [1903, p. 220 e seg.]. Afirma ela que, em épocas primevas, o homem primitivo vivia em pequenas hordas cada uma das quais sob o domínio de um macho poderoso".

"O ponto essencial, contudo, é que atribuímos a esses homens primitivos as mesmas atitudes emocionais que pudemos estabelecer pela investigação analítica nos primitivos da época atual — em nossos filhos. Isto é, supomos que eles não apenas odiaram e temeram o pai, mas também o honraram como modelo, e que cada um deles desejou ocupar seu lugar na realidade. Podemos, se assim for, compreender o canibalismo como uma tentativa de assegurar uma identificação com ele, pela incorporação de um pedaço seu.

Deve-se supor que, após o parricídio, um tempo considerável se passou, durante o qual os irmãos disputaram uns com os outros a herança do pai, que cada um deles queria para si sozinho".

"(...)conduziram por fim a um acordo entre eles, a uma espécie de contrato social. A primeira forma de organização social ocorreu com uma renúncia ao instinto, um reconhecimento das obrigações mútuas, a introdução de instituições definidas, pronunciadas invioláveis (sagradas), o que equivale a dizer, os primórdios da moralidade e da justiça.Cada indivíduo renunciou a seu ideal de adquirir a posição do pai para si e de possuir a mãe e as irmãs. Assim, surgiram o tabu do incesto e a injunção à exagomia".

"Um animal poderoso — a princípio, talvez, sempre um que também era temido — foi escolhido como substituto do pai.""(...)o totem era encarado como ancestral de sangue e espírito protetor do clã, a ser adorado e protegido, e, por outro, marcava-se um festival em que se lhe achava preparado o mesmo destino que o pai primevo havia encontrado. Ele era morto e devorado por todos os membros da tribo, em comum. (A refeição totêmica, segundo Robertson Smith [1894].) Esse grande festival, na realidade, era uma celebração triunfante da vitória dos filhos combinados sobre o pai.

"(...) estamos justificados, dizia eu, em encarar o totemismo como a primeira forma em que a religião se manifestou na história humana, e em confirmar o fato de ele ter sido vinculado, desde o início, aos regulamentos sociais e às obrigações morais". "(...)Assim, as autoridades freqüentemente se impressionaram pela maneira fiel mediante a qual o sentido e o conteúdo da antiga refeição totêmica são repetidos no rito da Comunhão Cristã, na qual o crente incorpora o sangue e a carne de seu deus, em forma simbólica"."(...)Numerosas relíquias da era primeva esquecida sobrevieram nas lendas populares e nos contos de fadas, e o estudo analítico da vida mental das crianças proporcionou inesperada abundância de material para preencher as lacunas em nosso conhecimento dos tempos primitivos. (...) Nada existe de inteiramente fabricado em nossa construção, nada que não possa apoiar-se em fundamentos sólidos".


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